O diretor goiano Clery Cunha merece um resgate cultural que a garotada brasileira não parece disposta a fazer, com os grandes veículos da imprensa chapinhando na lama do descrédito e a redução da crítica cinematográfica ao fenômeno dos youtubers infantilizados “explicando o final de”, provavelmente o passado, principalmente no que tange a arte brasileira, está fadado ao esquecimento total.
Clery começou na década de 50 como cabo-man na extinta TV Tupi, foi ator, redator, produtor, trabalhou em rádio e televisão, injetou a linguagem cinematográfica no clássico telejornal “Aqui Agora”, mas foi no cinema que ele se firmou criativamente. Eu destaco em sua filmografia alguns momentos que, felizmente, os garimpeiros interessados podem encontrar na internet.
“Os Desclassificados” (1972), uma estreia surpreendente que demonstrava sua superioridade dentre outros realizadores da Boca paulistana, “Chumbo Quente” (1977), faroeste protagonizado pela dupla sertaneja Léo Canhoto e Robertinho, o bonito “A Pequena Órfã” (1973), baseado na telenovela homônima da TV Excelsior, “O Outro Lado do Crime” (1978), policial com José Lewgoy, protagonizado pelo locutor Gil Gomes, o tenso “Joelma 23º Andar” (1980), obra baseada no livro “Somos Seis”, psicografado por Chico Xavier, primeiro filme com temática espírita, e, claro, “Matar ou Morrer – O Caso Thabata, o Bebê Refém” (1997), projeto independente e de baixíssimo orçamento, lançado diretamente no mercado de home video, protagonizado pelo policial Conte Lopes.
Matar ou Morrer – O Caso Thabata, o Bebê Refém (1997)
A trama reconta o caso envolvendo Eiji e Pascoal, dois sequestradores que provocaram 9 horas de tensão e angústia para a família Eroles, crime brutal e desumano que abalou o Brasil, celebrando o papel do Capitão Conte (vivido pelo próprio) no salvamento da pequena Thabata.
Eu lembro perfeitamente do dia em que conheci este filme, eu tinha por volta de 13 anos de idade, meu pai havia alugado na “RG Vídeo”, do amigo Ricardo, e, como sempre, eu corria para ver a sacola com os estojos pretos, cada fita era um mistério a ser desvendado. Como era tradição, sentávamos todos juntos diante da TV de 16 polegadas no fim do dia para sessões duplas, por vezes até triplas.
Eu não fui criado com frescura, aprendi desde cedo a discernir realidade e fantasia (algo importante na formação cognitiva), meu gênero favorito na época era o terror, então estava preparado para algo similar ao “Desejo de Matar”. O fato é que, ainda nos créditos iniciais, meus pais perceberam que as cenas de crianças se drogando pareciam reais demais, logo, senti que havia um desconforto no quarto.
A música-tema não ajudava, intensificava a estranheza, foi como se a gente tivesse acessado a deep web, muitos anos antes dela existir. Quando a figura do Jacinto Figueira Júnior, o “Homem do Sapato Branco”, apareceu na tela, meu pai retirou o VHS do aparelho, os olhares da minha mãe garantiam uma noite conturbada, entendi que ele também achava que seria algo mais próximo das fitas protagonizadas pelo Charles Bronson. O caso é que eu não me fiz de rogado, aguardei eles dormirem, levei a fita para o meu quarto e, com refrigerante e biscoitos wafer do Fofão, apreciei esta pérola do cinema de guerrilha, claramente feita na raça.
O filme é bom? Não, muito longe disto, ele é precário em todos os sentidos, tecnicamente simplório, as atuações são terríveis, o som é constrangedor, a edição é tosca, a montagem é incrivelmente tosca, até a sinopse da contracapa erra, prometendo 120 minutos de “pura verdade” e entregando apenas 80, mas ele é tematicamente importante, principalmente hoje em dia, já que vivemos a inversão de valores, a vitimização dos bandidos e a demonização da polícia. Em tempos em que filmes são produzidos para humanizar monstros, melhor lembrar da época em que eles eram feitos para aplaudir aqueles que os enfrentavam.
Se o resultado, apesar do esforço da equipe, sendo gentil, parece trabalho de conclusão de curso audiovisual, com microfones aparecendo nas cenas, praticamente afinado no mesmo diapasão do “The Room”, de Tommy Wiseau, o roteiro, com todos os seus problemas, consegue transmitir a mensagem de forma bastante acessível, intensamente popular.
A sequência em que a dupla de bandidos invade a casa da pequena Thabata insinua uma tentativa de simbologia interessante, ainda que pobre em sua execução, mas que merece ser ressaltada. O pai, que voltava da locadora de vídeo, ao escutar de sua esposa o que estava acontecendo, abandona a sacola com as fitas e, junto com os policiais, adentra sua residência. A câmera então, sem sutileza alguma, foca nas fitas largadas no asfalto, como que alertando que aquilo não era fantasia, aquilo era vida real.
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