Críticas

“O Mundo de Apu”, de Satyajit Ray

O Mundo de Apu (Apur Sansar – 1959)

Neste terceiro projeto, Ray desvia o foco do realismo social para o melodrama catártico, especialmente no terceiro ato, com um domínio maior do cinema enquanto ferramenta emocional, mas mantendo sua abordagem econômica e orgânica dos sentimentos explorados pelos personagens.

O protagonista, agora adulto, vivido por Soumitra Chatterjee, precisa equilibrar seu sonho profissional de ser escritor com o despertar de um amor inesperado, uma bela e doce esposa, vivida por Sharmila Tagore, que entra por acaso em sua vida, mas que acaba se tornando o elemento mais importante em sua rotina. Quando ela precisa deixar sua companhia para ter o bebê longe de casa, Apu fica completamente desnorteado, perambulando sem rumo, os olhos perdidos em seus vislumbres de um futuro harmonioso em família. A jovem não resiste ao parto, mas a criança sobrevive, o pai desolado tenta interromper sua vida na linha do trem, símbolo que remete ao primeiro filme, quando, ainda criança, com sua irmã, ele corria para ver a sua passagem.

É interessante notar que, no segundo livro de Bibhutibhushan Bandyopadhyay, que foi adaptado no filme, o personagem reage friamente ao falecimento da esposa, já que foi uma reunião arranjada. Ray ficou tão tocado pela possibilidade dele se apaixonar por ela, mesmo levando em consideração este aspecto da relação, que preferiu modificar isso no roteiro, uma decisão muito acertada. Apu, que já havia perdido seu pai e sua mãe, encontrou no ritual do casamento uma estabilidade antagônica aos desafios que enfrentava na cidade grande, mas, consciente de que está sozinho novamente, ele desiste de tudo, rejeitando o bebê e se desfazendo do livro que estava escrevendo.

Um detalhe bonito que se perde na tradução é o significado do nome do filho, Kajal, que significa máscara. Na cena em que Apu leva a esposa ao cinema, ele pergunta o que há de diferente nos olhos dela, ao que ela responde: “kajal”. Aquela criança, que sofre o abandono do pai, representa para ele a máscara de sua dor mais pungente. Para reconquistar o carinho do filho, que se defende com violência de uma realidade injusta, o pai terá que aprender a se adaptar, sublimar sua tristeza e reencontrar em si próprio o frescor exploratório da sua infância.

Um lindo desfecho para uma trilogia que, sem exagero algum, pode ser considerada um patrimônio atemporal e precioso da Sétima Arte.

  • Você encontra o filme em DVD e, claro, garimpando na internet.
Octavio Caruso

Viva você também este sonho...

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