Entrevistas

Entrevista EXCLUSIVA com DEBORA MUNHYZ, musa do cinema brasileiro

Debora Munhyz é uma pessoa extremamente gentil, carinhosa, mantenho contato com ela há anos nas redes sociais, conquistei seu respeito profissional com meus textos críticos, mas eu estava devendo uma entrevista com ela para o “Devo Tudo ao Cinema”, na realidade, aguardava o timing certo, que finalmente chegou, já que ela conversou comigo enquanto se preparava para receber uma justa homenagem no Festival Paranaense Itinerante Boitatá de Cinema de Horror.

O meu primeiro contato com seu trabalho foi na adolescência, o rapaz introvertido, estudioso apaixonado autodidata de cinema, garimpou tudo da chamada “Boca do Lixo” que conseguiu encontrar em VHS. E, sem desmerecer os esforços das musas estrangeiras no gênero erótico da época, nomes como Christina Lindberg, Sylvia Kristel, Isabel Sarli, Gloria Guida, Edwige Fenech, Linda Lovelace e Georgina Spelvin, considero as nossas musas brasileiras das chamadas pornochanchadas muito melhores em todos os sentidos.

E, dentre elas, havia algo especial na Debora, a “ciganinha”, como era conhecida nos bastidores, que a destacava, uma sensualidade hipnótica no olhar, talvez reflexo da timidez real que ela enfrentava nas filmagens, além do senso de humor adorável que se exibia salvando os diálogos mais loucos.

Versátil, ela firmou seu nome também no cinema de terror, fazendo parte da equipe do saudoso mestre José Mojica Marins, além de brilhar nos palcos em peças de temática espírita.

O – Começo nosso papo com uma chuva de perguntas, para entender como a menina pernambucana interiorana Maria das Neves de Lima se tornou a musa do cinema brasileiro Debora Munhyz. Como foi sua infância? Como começou seu interesse por cinema? Quais eram os seus filmes favoritos na infância e adolescência? Como despertou em você o desejo de trabalhar na área? E, importante, você teve apoio da família nesta decisão?

D – Vamos lá, sou pernambucana, nasci no agreste de Pernambuco, no interior, próximo à Afogados da Ingazeira, bem sertão mesmo, próximo à Paraíba, vim para o Paraná muito pequenininha, meu pai era, costumo dizer, um “cigano” ambulante, ele ficava um pouco em Pernambuco, mudava para o Paraná, só em 1970 nós chegamos finalmente em São Paulo.

Chegando lá, eu tinha uma vida bem interiorana, mas ainda em Itapejara D’Oeste, no Paraná, foi quando eu vi a primeira televisão, por volta de 1967, 1968, na praça, uma novidade para o público, foi algo incrível, na minha mente, talvez pela emoção do momento, lembro da imagem ser colorida, uma criança na tela, não dava para escutar nada. Eu estava com meu pai, voltávamos da missa de domingo, e pensei: eu vou fazer aquilo. O meu pai, tadinho, que também não sabia o que era aquilo, nem deu importância.

Quando fomos para São Paulo, em 1970, a adaptação foi bem complicada, éramos sete irmãos que haviam vivido apenas na fazenda, imagine, tudo muito diferente. O meu pai foi um grande batalhador, lutou para que não faltasse nada, foi quando tive contato com o cinema. Aos olhos da menina sonhadora, o cinema era maior do que a TV, logo, pensei: quero fazer isto aqui também.

O primeiro filme que eu fui assistir foi muito romântico, “Dio, Come Ti Amo!” (de Miguel Iglesias), foi mágico, aquela maravilha da combinação da música com a atuação, muito lindo, mas ao mesmo tempo, muita informação. Aquela experiência fortaleceu ainda mais os meus sonhos artísticos. Naquele tempo era tradição de final de semana prestigiar os filmes em cartaz, quem me acompanhava era o meu irmão, mas meu pai nem imaginava que eu nutria no meu íntimo o desejo de trabalhar com arte, ele não lembrava daquele meu primeiro encontro com o aparelho de TV.

Eu comecei a procurar aqueles primeiros anúncios nos jornais de escolinhas de cinema, fui até o Wilson Rodrigues, da Planeta Filmes. Ele também foi aluno do sr. Mojica (José Mojica Marins), havia feito figuração nos projetos dele. Através deste contato, fui ao encontro do sr. Mojica com um grupo de amigos, que já eram técnicos nas produções dele, entre eles, o Geraldo Damasceno. Lá na escola, o meu sonho começou a se concretizar.

O meu pai, claro, foi totalmente contra, família tradicional, nordestina, apanhei muito, confesso (risos), não sei até hoje se meu pai parou porque cansou de bater ou porque eu me acostumei a apanhar (risos). Ele chegou a prestigiar uma peça nossa lá no curso do sr. Mojica, conversou com ele, perguntou se ele se responsabilizaria por tudo que acontecesse, ou seja, ele me entregou, e o sr. Mojica foi extremamente responsável, o guarda-costas dele, o Satã, foi quem começou a cuidar de mim, até porque eu era menor de idade ainda, tinha 16 anos, foi quando tudo começou.

O nome artístico Debora Muniz nasceu com o primeiro filme, “A Mulher Que Põe a Pomba no Ar” (1978), direção da Rosângela Maldonado e do sr. Mojica, a personagem se chamava Debora. Até aquele momento todo mundo me chamava de Neves. A Rosângela me viu e disse: “Esta é a minha Debora”. O sr. Mojica, preocupado, avisou que eu não tinha experiência, mas não teve jeito.

Depois da estreia, todos que me encontravam na Rua do Triunfo, perguntavam: “Você não é a Debora do filme da Rosângela?” Eu tentava explicar que era a Neves, mas não dava em nada, naquele momento nascia a Debora Muniz.

Debora Munhyz com o saudoso mestre José Mojica Marins.

O – José Mojica Marins é um dos meus ídolos no cinema brasileiro, o terror foi meu gênero de formação na infância. Como foi sua relação com o saudoso Mojica, conte alguma história curiosa ou engraçada de bastidores, algo que aproxime do público a figura humana dele, muito mais interessante que a caricatura sempre lembrada.

D – O terror para mim começou na época da adolescência, antes da escolinha, nos circos perto de casa, havia um, o Circo do Carlito, que tinha espetáculos de teatro, a criançada toda ia em grupo. A minha primeira experiência foi nestes palcos, quando assisti ao “Dr. Jones e Frankenstein”. O impacto emocional foi tão grande que, quando cheguei em casa, escrevi uma peça inspirada naquela história, depois montei o espetáculo com as crianças da minha sala de aula, apresentamos na escola em que eu estudava. O sucesso foi tão grande que acabamos levando a peça para outras escolas vizinhas, claro, com o aval dos professores, dentre eles, o João, foi muito bacana, eu já comecei no terror, antes mesmo de conhecer o sr. Mojica.

Ele foi literalmente um pai, não só no sentido figurado, na responsabilidade, a partir do momento em que meu pai me entregou, eu passei a conviver no estúdio, fiquei durante um tempo na casa da Nilce, que era a secretária dele na época. Quando o filho dele, o Crounel, foi para o estúdio ajudar em tudo, nós trabalhávamos muito juntos, então eu sempre digo que a família dele foi a minha segunda família, o sr. Mojica foi um pai, um amigo, um incentivador, aquele que cobrava também, não me dava moleza, eu serei eternamente grata ao homem que ele foi. Os filhos dele costumam dizer que ele foi um pouco distante enquanto pai, mas para mim, ele foi muito próximo, eu tive o privilégio de ser acarinhada também pela dona Carmen, a mãe dele, convivi muito com ela, foi lindo, aliás, ele foi um eterno bebê para ela.

O sr. Mojica, algo curioso, que as pessoas não sabem, ele não sabia dever para ninguém, esta era uma das razões de confusões nos filmes. Uma vez, ele estava devendo, sabe como é, começava a filmar, negativo na época era caro, o equipamento era caro, então ele acabava se endividando. Os credores já sabiam, esperavam o filme ficar pronto, aí apertavam ele para cobrar. Ele entregava tudo, inclusive percentual dos filmes, ele entregava tudo o que tinha.

Eu lembro um dia em que ele queria entregar um filme para um dos credores, mas nós, a equipe toda, trancamos ele numa sala no estúdio. Você não tem ideia, o Mojica gritava que ia morrer lá dentro, desespero total, enquanto que a gente corria para buscar uma forma de pagar a conta, a dívida, para que ele não entregasse o filme. Os credores chegavam com notas e ele assinava, entregava tudo realmente, então era difícil, mas hoje a gente consegue ver de uma forma divertida.

Ninguém sabe, mas este homem, para pagar as dívidas, vendia tudo o que tinha. Uma vez, ele foi levar o nosso almoço, Nilce e eu estávamos montando um filme na edição, acho que foi “Delírios de Um Anormal” (1978), porque ele ia viajar para o festival de Sitges, na Espanha. A gente com fome esperando por horas, daí chega o sr. Mojica sem nada. E a comida? Ele explicou que encontrou um amigo no caminho, que contou uma história para ele, disse que estava sem leite em casa, daí, sem pensar duas vezes, ele deu todo o dinheiro do nosso almoço para o amigo comprar leite para o filho. E nós? Nós ficamos com fome (risos). Este ser muito especial era o sr. Mojica.

O – O seu primeiro trabalho por trás das câmeras foi no “Inferno Carnal” (1977), do Mojica. Como foi esta experiência?

D – A escola do sr. Mojica tinha mais de 300 alunos, ele sempre, antes de começar algum projeto, perguntava o que cada um queria aprender. Tinha gente que queria ser continuísta, que queria aprender truques de maquiagem, operador de câmera, eletricista, tudo que envolvia a arte de fazer cinema. Nós tínhamos um grande professor chamado Giorgio Attili, que era o diretor de fotografia do sr. Mojica.

No começo eu entrei como ajudante da Nadir, que era continuísta, a Nilce era a continuísta oficial, depois participavam aqueles que estavam aprendendo. Eu costumo dizer que nós éramos operários mesmo, com horário para começar, mas não tinha hora para terminar, por vezes virávamos a noite, todos acabavam dormindo no estúdio.

O set de filmagem era maravilhoso, a sensação era de que uma família estava trabalhando, do mais velho aos mais novos, como eu, tinha também a Fátima, uma amiga/irmã, ficávamos sempre juntas no estúdio. O trabalho era uma enriquecedora aula, porque eu escolhi continuidade, mas acabava fazendo de tudo, a gente ajudava a montar cenário, carregava fio, aquilo era uma verdadeira fábrica de fazer cinema.

Debora Munhyz em “Gozo Alucinante”, de Jean Garrett. (1985)

O – Um dos pontos que respeito mais em seu trabalho é que, ao contrário de muitas colegas suas que viveram intensamente a época, você fala com carinho da chamada Boca do Lixo, o cinema independente paulistano. Você trabalhou com quase todos os diretores do período, com qual você teve mais afinidade (e a razão)? Se puder, conte alguma história de bastidores de alguma produção, algo que te marcou mais.

D – Na Boca, foi algo incrível também, cheguei lá na época em que o sr. Mojica foi para Sitges, na Espanha, por causa do festival, então ele montou um escritório, Fátima e eu trabalhávamos como secretárias lá. Lá, servia também para buscar alunos, o ponto de partida para o curso do sr. Mojica na Escola do Zé do Caixão.

O primeiro diretor que eu tive amizade, que foi outro pai, outro protetor na minha vida, o Ary Fernandes, o escritório dele ficava do lado do nosso, e, do outro lado, ficava o escritório do Elias Curi, da Cinedistri, que foi outro amigo muito querido. Os dois foram minhas primeiras amizades que eu tive na Boca.

Depois, quando eu já estava atuando, fazendo pontas em filmes, alternando com personagens maiores, com falas, conheci Jean Garrett, que foi outro amigo querido, mas ele era maluco (risos), completamente doido. O Carlão Reichenbach, não cheguei a ser dirigida por ele, mas ele fez a direção de fotografia de “Gozo Alucinante”, houve também uma versão, “Laser – Êxtase de Mulher”, o filme foi grandioso, uma equipe maravilhosa, Campello Neto na cenografia, música do Júlio Medaglia, aprendi a ter um carinho muito grande pelo Carlão, que me ajudou naqueles momentos difíceis de filmagem, chamei ele para o resto da vida de “Tio Carlão”.

Teve também o Ody Fraga, carinho muito grande por ele, aquele que gostava de contar piadas, sempre alegre, inteligente, brincalhão. Após os 40 dias consecutivos de filmagens de “Gozo Alucinante”, entro em todas as cenas do filme, foi intenso, coisa de louco, chego no escritório super cansada, daí o Ody fala: “Você tem agora 5 dias para descansar, depois começa a filmar de novo”. Eu: “Como assim?” Ele: “Você vai fazer o meu filme”, que também era produção do grande Augusto de Cervantes.

Eu fui muito privilegiada, fui protagonista em duas grandes produções, levando em conta o cenário do cinema independente. O filme do Ody, “Senta no Meu, Que Eu Entro na Tua” (1985) é uma grande piada, bem a cara dele, hilário, uma antologia com 2 histórias, eu protagonizava uma, a Sílvia Dumont protagonizava a outra, nós duas havíamos atuado no “Gozo Alucinante”.

É difícil escolher apenas um diretor, foram muito carinhosos comigo, trabalhei com 95% dos diretores da Boca, da Rua do Triunfo. O Ody, cheguei um dia no escritório, ele estava lá, todo angustiado, para lá e para cá, “atende este telefone para mim, Debora”, achei estranho, daí fui ver, uma coisa muito doida, a censora de Brasília querendo saber o nome do filme, para passar o certificado de exibição.

Ele simplesmente não conseguia falar o nome do filme (risos), compreensível, né? Como ele ia falar para uma mulher, principalmente a censora, “Senta no Meu, Que Eu Entro na Tua” (risos)? Eu aceitei a missão, segurei o riso, falei, ela ficou em silêncio um tempão (risos).

Debora Munhyz e o diretor Clery Cunha.

O – Houve uma pressão externa tremenda na época da transição dos filmes eróticos leves para os que tinham cenas explícitas, claro, para enfrentar a competição estrangeira nas salas, mas há algo que li sobre sua posição de, apesar de tímida, alguém que chegava a desmaiar nas cenas de nudez, decidir seguir em frente, que me encantou. Você simplesmente não estava disposta a sacrificar todo o esforço de se firmar como atriz na indústria. Eu imagino que não tenha sido uma escolha fácil, você pode falar mais sobre este momento importante na sua carreira?

D – Realmente o momento de transição foi extremamente difícil, imagine você, uma pernambucana vinda do interior, com um ideal, algo pelo qual lutei muito, passei por situações terríveis de família, não só dos pais, tios, primos, todos, de amigos, vizinhos, daí, depois de tantos obstáculos superados, quando começava a aproveitar os louros do esforço, aparece isto, pensei: acabou tudo! Na época, aquilo era visto como prostituição mesmo, tratavam desta forma. Eu ainda resisti por pouco mais de 1 ano, o Ary Fernandes conversava muito comigo, ele me dizia: “Se você não fizer, acabou para você o sonho de cinema, indústria brasileira não existe mais, a salvação é o explícito, a alternativa é o fim.”

Eu recusei vários convites, até que veio o Fernando, um amigo querido, com a proposta do Álvaro de Moya, que estava chegando do exterior com um roteiro que tentou vender para outros, “A B… Profunda” (1984). Ele queria um elenco de pessoas desconhecidas, mas uma atriz precisava ter mais experiência, para segurar a produção. O Fernando me indicou na hora, a minha cabeça entrou a mil, pensei: por que não agora? Eles eram os melhores produtores na época, teria qualidade, uma equipe boa, acabei aceitando.

Não foi fácil, aceitei e mudei de ideia várias vezes, durou mais ou menos um mês esta angústia. Até que um dia, o Paulinho Gregório e o Juca chegaram no escritório avisando que estavam com as malas prontas para a viagem: “Assina aqui e vamos embora”. Eu tive que assinar, não tinha mais saída, o cachê foi mexido várias vezes, cada vez que eu desistia, eles voltavam com um acréscimo para ver se conseguiam me convencer.

Debora Munhyz em “A B… Profunda”, de Álvaro de Moya. (1984)

A minha parte foi filmada no litoral. O Moya disse que buscou um ator que tivesse amizade comigo, que não traria problemas, vários requisitos. Neste momento conheci também o Wagner Maciel, um irmão querido. Só que foi mais difícil ainda, exatamente porque o ator já me conhecia, um dos momentos mais complicados da minha vida, porque eu havia combinado, assinei em contrato: “Olha, vai filmar uma vez, se não ficar bom, eu não repito a cena, não tem como, uma cena, pronto, acabou!” Aí nasceu a história de eu desmaiar sempre nas cenas de nudez (risos).

Quando começou a rodar, a minha cabeça entrou em parafuso, pensei na minha família, na minha história, a vergonha, tudo, foi muito complicado. É por isto que eu digo sempre, até hoje, o ator não tem que interpretar, ele tem que viver o personagem. Se eu tivesse interpretando naquele momento, eu não teria conseguido, então eu fui a Helen, entrei de cabeça, ela estava ali na cena, mas, de vez em quando, a Debora entrava também (risos), virou uma briga na minha mente, Helen e Debora se engalfinhando, foi terrível (risos).

Debora Munhyz em cerimônia de premiação na década de 80, com Jofre Soares.

Eu pensava: se eu pedir para cortar, vou ter que repetir, fazer novamente seria muito pior, então aguentei até o final. Quando ele disse “Corta!”, a briga havia sido tão extrema, que eu desmaiei. Claro que, depois de um tempo, acabei quebrando esta barreira, fiz alguns filmes em que minha única exigência era saber quem estava na equipe, o meu objetivo era fazer cinema, podia até ter cenas explícitas, mas tinha que ter qualidade.

O sucesso levou o pessoal a, em pouco tempo, começar a fazer rápido qualquer coisa, desceram o nível, virou pornô mesmo, sem preocupação estética alguma, gravavam em vídeo, nem dublavam mais, eu só filmei em película, foi quando eu decidi parar.

O – Eu gosto bastante dos filmes do português Jean Garrett (José Antônio Nunes Gomes da Silva), ele conseguia imprimir uma forte assinatura estética que elevava a qualidade dos roteiros. Como foi trabalhar com ele em “Gozo Alucinante”? Há alguma história curiosa ou engraçada de bastidores nesta produção?

D – Aconteceu tanta coisa em “Gozo Alucinante”, foi uma coisa louca (risos), foram 40 dias de filmagens consecutivas, algo intenso, ficamos em uma chácara muito bacana, com toda assistência, uma produção maravilhosa do Augusto de Cervantes, grandiosa para os padrões do que era produzido na Rua do Triunfo.

O Garrett era, como eu já disse, completamente doido. Teve um dia em que eu, com muita dor de estômago, fui jantar à noite, pedi uma vitamina de abacate, e, olhe só, o Jean me coloca um monte de whisky na vitamina afirmando que aquilo era bom para o estômago (risos).

O Reichenbach me acudiu, gritou para ele: “Você está ficando louco, Jean”, ele, tranquilo, disparou: “Que nada, ela vai ficar bem, deixa ela tomar o whisky com vitamina, vai ficar boa rapidinho” (risos). Ele era aloprado, doido varrido, mas também era uma pessoa muito querida.

E teve uma cena de cavalo também, a fuga da personagem a cavalo. Eu pedi muito ao Garrett, desde o início, para ele me trazer antes o cavalo, com umas barrinhas de açúcar para eu oferecer, para ele se acalmar comigo, afinal, eu não havia montado desde criança. Nós fomos filmando, vários dias, até que numa manhã a camareira, a esposa do Ody, me coloca um figurino, daí eu, opa, isto é figurino de montaria, como assim? Ela: “Ué, Debora, hoje é a cena da fuga”. Eu nem conheço o cavalo! (risos) Quando eu saí, o cavalo era enorme, lindo, mas eu pensei: gente, o que eu vou fazer? O cenário já estava pronto, tudo, luz, 3 câmeras, a fuga seria por uma ribanceira braba. Eu entrei em pânico.

Eu preciso deixar claro que eu era meio doida também (risos), eu era capaz de qualquer coisa na frente da câmera, acho até que só estou viva hoje porque eu abandonei a indústria naquela época. Até por esta característica, creio que consegui fazer o explícito também, a magia da câmera.

O Jean lá, olhando para mim, respirei fundo e, de pirraça, fui para a cena. Subi no cavalo, ele disparou, entrei no meio do mato, desci a ribanceira, eu estava revoltada com ele, com razão, com raiva de todo mundo, até do “Tio Carlão”, acho que fiquei uma hora no mato. Eu desmontei, fiquei lá, e eles, apavorados me procurando, desesperados, imagine a culpa que eles estavam sentindo, até porque eu tinha alertado com muita antecedência, fiquei só escutando ao longe os gritos.

Quando voltei, o Garrett estava transtornado, veio me xingando de tudo que é nome, até que eu, tranquila, respondi: “Este é o troco que eu estou te dando” (risos). Ele era inconsequente, mas havia encontrado uma doida que também não deixava barato.

Aliás, um detalhe curioso, quando eu entrei na produção, o filme já estava sendo filmado com outra atriz. Ele inicialmente queria que eu tingisse meu cabelo de loiro. Eu, que era mimada demais por eles todos da Boca, bati o pé: “Não vou tingir cabelo, se não é para mim o papel, busque outra”. A atriz, não sei o motivo, filmou uma semana inteira, pense no prejuízo, os caros negativos desperdiçados, depois saiu.

O Garrett me ligou imediatamente, pedindo para eu correr para o escritório e acertar tudo para começar a filmar naquele mesmo dia! Eu: “Não vou tingir meu cabelo de loiro”, ele: “Não, desgraça, vai assim mesmo!” (risos) Venci!

O – A sua atuação no curta “Amor Só de Mãe” (2003), do Dennison Ramalho, é incrível, a garotada de hoje conheceu seu trabalho a partir deste filme. “Encarnação do Demônio”, do mestre Mojica, veio logo depois, amei o filme, fiz a crítica dele na semana da estreia. Como você enxerga a sua reinvenção na área? É uma jornada cinemática, daria para fazer um filme sobre sua carreira.

D – “Amor Só de Mãe” foi muito especial, eu achava que havia me divorciado do cinema, porque eu havia produzido “Dr. Frank na Clínica das Taras” (1987), em que pude colocar em prática tudo o que aprendi com o sr. Mojica, todo rodado em Brasília, com direção do Mojica, éramos quatro sócios, dois de Brasília.

Consegui tudo lá, cenografia, tudo divino, quando ele viu tudo aquilo, a locação da clínica, por preço irrisório, ele ficou empolgado, disse que não achava certo utilizar a verba, toda aquela qualidade de produção que eu havia garantido, em apenas um filme com cenas explícitas, foi quando ele sugeriu que fizéssemos dois filmes, topamos, a louca aqui, o Ary Santiago, filmamos então simultaneamente “Dr. Frank…” e “As Duas Faces de Um Psicopata”, sem cenas explícitas. O segundo nunca foi exibido.

Eu tive muitos problemas com os dois sócios de Brasília, problemas demais, tive contas a pagar, trabalhei muito, tive até ajuda de amigos fora do meio para conseguir pagar tudo, as dívidas vinham todas no meu nome, a produtora era minha, a Canaã Produções. Eu sempre prezei muito, acho que é o que tenho de mais importante na minha vida: o meu nome. É tão importante que tenho dois (risos), e respondo pelos dois, a vida me deu este privilégio.

Eu tive muitas decepções neste projeto, ao ponto de, quando percebi que estava impossível com um dos sócios de Brasília, surgiu uma oportunidade maravilhosa de viajar para o Japão. Nesta época, eu já estava preparando também um show de dança para levar para a Itália, para a emissora RAI. E, numa festa de imigração japonesa, conheci o sr. Kanehira, que foi o mesmo que levou Éder Jofre para o Japão, ele tinha uma grande empresa de boxe. Recebi dele o convite de viajar para lá, ele havia montado uma casa de shows típicos brasileiros para a esposa dele, em Tóquio. Nossa, aquilo era juntar a fome com a vontade de comer (risos), a necessidade naquele momento de sair de campo completamente.

Em questão de 15 dias, consegui tudo, visto, tirado diretamente dentro do consulado, graças ao sr. Kanehira. E os sócios de Brasília não haviam pensado que eu não tinha passado procuração para nenhum deles, conclusão, com a minha saída, foi embora tudo, eles não conseguiram fazer mais nada. Este é um dos motivos de hoje não existir nada deste filme, apenas o negativo na Cinemateca, em meu nome e no do Ary Santiago. Eu parei totalmente com o cinema por uns 10 anos, fiquei indo e voltando do Japão, passei a trabalhar só com dança, eu me profissionalizei como dançarina.

Debora Munhyz e Helena Ignez em “Encarnação do Demônio”. (2008)

Na minha última volta do Japão eu conheci o Dennison Ramalho, que me convidou para fazer o seu curta “Amor Só de Mãe”. Eu já havia recusado vários convites, a minha decepção havia sido tremenda, eu tinha desistido mesmo de fazer cinema, só que, quando o Dennison chegou, foi incrível, ele tinha uma revista com os quadrinhos do sr. Jayme Cortez, que foi uma pessoa muito querida que conheci na época do sr. Mojica, ele era amigo dele, conheci a família toda. Quando vi os storyboards, a personagem era como se ele tivesse me desenhado, foi um encontro mágico, foi meu reencontro com o cinema, o Dennison me trouxe de volta literalmente.

Ele é um amigo, um irmão, uma pessoa que eu confiei cegamente. Eu uso uma lente louca no curta, ela era terrível para colocar e tirar, mas não deixava maquiador nenhum tocar, só o Dennison mesmo podia mexer. É até difícil definir o que ele é para mim até hoje, um ser muito especial, um irmão caçula.

Eu joguei na personagem, Formosa, aquela energia que estava retida há muito tempo, todo aquele amor que eu tinha pelo cinema, ele fluiu, eu fiz este trabalho com a alma, vivi intensamente esta personagem, espero encontrar ainda na minha carreira outro papel tão grandioso quanto este.

O – Você, neste exato momento, está recebendo uma linda homenagem no Festival Boitatá de Cinema de Horror, em Londrina. O esforço daquela menina pernambucana sonhadora valeu a pena. Como você se sente hoje?

D – Nossa, Caruso, você é um grande guerreiro, grande mesmo, eu te admiro muito, admiro a pessoa que você é, este ser com quem me identifico muito. Você é muito verdadeiro, gosto muito de te acompanhar, de ler o que você escreve, você não tem barreiras, você escreve o que você sente, isto eu acho muito grandioso.

Hoje está sendo um dia muito especial na minha vida, este convite para receber esta homenagem aqui no Festival Boitatá de Cinema de Horror, nem a curadoria, as pessoas que me convidaram, elas não fazem ideia do que este gesto significa para mim, principalmente por ser aqui no Paraná.

Ontem, a Carol, que trabalha na produção do Festival, ela foi me pegar no aeroporto, durante a conversa, eu disse: Carol, a minha infância foi aqui no Paraná, eu estou voltando para colher os frutos de toda uma história, não só a história da atriz, da guerreira, uma trajetória muito difícil. Hoje eu sou muito grata a todos aqueles que passaram pela minha vida, todos aqueles que me ensinaram, que me deram oportunidades, que me conduziram até aqui.

E eu não estou na capital, estou numa cidade pequena, o que torna tudo ainda mais incrível, no local onde eu fui educada, onde eu aprendi os primeiros valores como gente, do meu pai e da minha mãe, a minha infância foi aqui. Colho agora tudo o que conquistei desde aquela manhã em que vi, com meu pai, aquela TV na praça. Eu não sabia o que era, não sabia que seria tão difícil. Eu estou profundamente emocionada, passa um filme na minha mente, fica difícil até verbalizar, sinto muita gratidão por este momento.

Eu me sinto como se esta cidade fosse um grande pé de jacarandá, um dia eu plantei as sementes, esta arvorezinha nasceu, hoje ela é grande, frondosa, eu me abrigo em sua sombra. É assim que defino este momento. Graças a tudo isto, graças à consciência que tenho hoje deste pé de jacarandá, que eu falo para você e todos que estão lendo estas palavras: não desista de seus sonhos, não importa o que seja, tudo é possível para quem quer, para quem busca, quem batalha e estuda, o sucesso depende de muito estudo, os degraus são muitos, mas é necessária a conscientização de cada degrau que você está escalando.

É normal escorregar, quando a chuva é pesada, a gente acaba caindo, o corpo pesado, você só vai conseguir voltar a subir os degraus se você conseguir identificar qual foi o degrau em que você caiu, e, para isto, você precisa conhecer cada um deles muito bem. Seja persistente. As pessoas buscam muito a fama, eu nunca busquei isto, eu busco respeito pelo meu trabalho, amo cinema, respeito muito esta arte, ele vai além de qualquer prêmio, cinema é vida, cinema faz parte da minha alma.

O meu maior prêmio é, hoje posso dizer com segurança, o reconhecimento, o respeito como atriz de cinema. Eu também amo o teatro, local onde me abasteço de energia, mas o cinema é onde eu encontro uma câmera, que eu vejo como um ser, que tem vida e que eu contraceno com ela. A câmera tem alma.

Caruso, gratidão pelo amigo que você é, sempre nos falamos pelas redes sociais, mas reforço, eu te admiro muito, você é alguém que faz a diferença. O mundo precisava de mais Carusos, com certeza teríamos um mundo bem melhor. Você é um destes amigos que fazem parte desta trajetória, através do que você escreve, das suas postagens, aprendo muito contigo. Continue sendo esta pessoa maravilhosa que você é, que leva as informações, que mostra o seu lado verdadeiro, eu te desejo muito sucesso, muito mesmo.

E, olha, eu quero ser dirigida por você, viu? De verdade, mesmo, beijo grande, muito grata por esta oportunidade de falar da minha história para o seu público, principalmente neste dia maravilhoso.

O – É lindo ler isto, espero que trabalhemos juntos em breve, grato demais pela extrema gentileza de tirar um tempo, neste dia muito corrido, para esta entrevista. Grato pelo carinho comigo e com o meu trabalho. Que seja uma noite maravilhosa, você merece. 

Octavio Caruso

Viva você também este sonho...

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