Artigo

Lembranças divertidas da época das LOCADORAS DE VÍDEO

Eu relembro hoje um momento curioso da minha jornada como apaixonado por cinema, o dia em que, sem pretensão alguma, vivi o sonho de trabalhar em uma locadora de vídeo.

A rede Blockbuster já havia dominado o mercado, os estabelecimentos pequenos lutavam para sobreviver, a era do DVD começava a dar os primeiros sinais de desgaste, enfrentando a pirataria das banquinhas dos camelôs.

Eu trabalhava na época como consultor de vendas em uma academia de ginástica, fruto da minha formação em marketing, mas a minha diversão era, nos horários de almoço, passear pelas duas locadoras de vídeo próximas que resistiam na Rua Conde de Bonfim (RJ).

Uma delas era especialmente organizada, com as filmografias completas dos grandes diretores, um excelente acervo, e, o mais importante, ela ainda trabalhava com fitas VHS. Na adolescência, já frequentava esta, conhecia as donas, elas gostavam de ter o controle de tudo naquele ambiente, dava para perceber o amor que sentiam pela sétima arte. Não havia funcionários, as duas se dividiam entre atender os clientes no balcão e arrumar os títulos nas prateleiras. O local era apertado, mas a seção de filmes antigos ficava sempre mais vazia, eu ficava lendo as sinopses, admirando as artes de capa, até a hora de retornar para a academia.

A outra locadora era da franquia Blockbuster, depois ela virou Lojas Americanas, hoje é uma farmácia. O que importa é que naquele período, de tanto que eu visitava, acabei fazendo amizade com os atendentes. Eu comprei muito DVD lá, os preços eram bons.

Um dia, como quem não quer nada, perguntei como era o processo para trabalhar na locadora. Os funcionários levaram na brincadeira, afinal, como eles mesmos afirmaram, o salário era péssimo, principalmente se comparado ao que eu recebia como consultor de vendas, com o adicional da comissão. Eu expliquei sobre minha paixão por cinema desde criança, e, vale ressaltar, na época já dava os primeiros passos na crítica profissional.

A academia de ginástica não tinha nada a ver comigo, eu exercitava diariamente naquela função o meu lado ator, vendia um serviço que desprezava solenemente. Eu, para o desespero da minha gerente, oferecia planos com descontos absurdos, sem pensar em comissão, dependendo da história triste que a pessoa interessada me contava. O assunto com os potenciais clientes na mesa era sobre filmes, livros, música antiga, em suma, tudo o que não era relacionado aos treinos físicos.

Na realidade, eu não podia trocar financeiramente o feijão pelo sonho, mas entrei na brincadeira. Os atendentes me avisaram sobre a data em que o gerente estaria realizando um processo seletivo, coisa séria, tive que trocar de horário com um colega, obviamente sem mencionar o real motivo. No dia, lá estava eu, somando numa fila de umas oito pessoas, escutando aquele discurso padrão que toda empresa oferece nestes casos.

O gerente entregou um questionário para cada candidato, disse que tínhamos 40 minutos para preencher e devolver para ele. As perguntas eram, claro, sobre cinema, para captar o conhecimento no tema. Coisas como: “Na sua opinião, qual é o melhor filme de todos os tempos?”, seguido de “Disserte sobre a sua escolha”, nada muito técnico, o foco era mais sondar o estofo cultural. Olhei discretamente para os lados, as respostas eram breves, notei que aquela garotada estava citando filmes da moda atuais.

Eu me recordei da época da escola, as provas de Redação no primário, em que a turma entregava dois parágrafos de “João e Maria foram na padaria…”, enquanto eu assustava as professoras com elaborados contos de terror e ficção científica que ultrapassavam os limites de linhas e terminavam na folha de trás. E senti então aquele frio na barriga de orgulho de estudante CDF, consciente de que eu estava na dianteira na competição com as mãos nas costas e de olhos vendados, uma espécie de pinball wizard cinematográfico.

Abordei o cinema clássico, citei pérolas japonesas, russas, iranianas, destrinchei o simbolismo do meu filme favorito, “Ben-Hur” (1959), de William Wyler, escrevi com muito prazer sobre um tema que eu dominava, enquanto os candidatos visivelmente disfarçavam a insegurança. Finalizei em menos de 20 minutos, entreguei o questionário ao gerente, que me olhava de forma estranha, provavelmente antecipando um desastre. Aguardei os outros terminarem, o gerente foi lendo tudo, e, na segunda vez em que me procurou com os olhos pelo ambiente, a expressão era diferente, ele estava positivamente impressionado.

Resumindo a história, ele veio me comunicar que eu estava empregado, parabenizou efusivamente a minha escrita e a minha visão sobre a arte. Eu agradeci sorridente os elogios, expliquei o que havia me levado até aquela situação, e, apontando para a fila de candidatos que aguardava ao lado, falei para ele dar a oportunidade para outra pessoa.

O engraçado é que, mesmo sabendo que eu não havia entrado no jogo para ganhar, que a minha motivação era satisfazer um sonho da época em que as locadoras de vídeo eram a minha segunda casa, o gerente continuou tentando por meses me fazer mudar de ideia, a cada visita a gente brincava sobre o caso com os atendentes.

Eu me divertia, durante os passeios, indicando filmes para os clientes, brincava com o gerente que era uma forma de compensar ele pela situação no processo seletivo. Ele, generoso, agradecia permitindo que eu levasse filmes de graça.

Quando me perguntam se eu já trabalhei em locadoras de vídeo, sempre me recordo destes dias mágicos…

Octavio Caruso

Viva você também este sonho...

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