Acredito ser necessário discutir a responsabilidade que nossos produtores desta arte precisam ter em seus projetos. “Bruna Surfistinha”, dirigido por Marcus Baldini, é um exemplo crasso de irresponsabilidade criativa nesta área. Desde que soube que tal projeto estava em andamento, percebendo a atitude dos realizadores perante a homenageada, emiti minha opinião, baseando-me nas estratégias de marketing do estúdio.
Entre os que defendem este projeto, o argumento mais utilizado é compará-lo a obras como “Uma Linda Mulher” ou “Christiane F.”, afirmando simplisticamente que somente aceitamos as histórias sobre mulheres da vida de fora do país. Não é a profissão da protagonista que está em discussão, mas sim, o erro (que já era evidente nos trailers) em celebrar a sua vida. Ela poderia ser uma médica ou uma cientista, mas este fator não seria o suficiente para que um filme sobre sua vida fosse interessante. Um filme sobre uma médica que escreve sobre seus pacientes não seria atrativo cinematograficamente, tampouco levaria neste país um massivo público às salas de cinema.
O que ocorre é uma inversão de valores éticos que se reflete em todas as mídias e no comportamento dos jovens brasileiros. Os heróis são os participantes de reality shows, as mulheres da vida são guerreiras batalhadoras, os professores e policiais são escória e ganham mal. O que podemos esperar de um panorama deste?
Existe um público imenso sedento por celebridades instantâneas, tanto que estão preparando um filme sobre a Geyse Arruda e um sobre a criadora da grife “Daspú”. Enquanto isto, os cineastas estrangeiros celebram seus valorosos heróis.
O filme “Taxi Driver” fala sobre um motorista de táxi que, inconformado com sua vida frustrante, decide promover uma guerra para proteger uma jovem. Caso formos buscar todos os roteiros de cinema e peças de teatro já encenadas, nós vamos achar que muitos são calcados em péssimos exemplos. Mas existe um elemento essencial neles: FICÇÃO. Assim como os contos da carochinha.
Agora pegue como exemplo “Christiane F.“. A história é real. Mas analise o filme e perceba se ele CELEBRA a jovem ou se ele a usa como exemplo dos malefícios da vida que ela escolheu para si mesma. Ninguém vai sair de uma sessão de “Christiane F.” afirmando que ela era uma guerreira batalhadora, já com o filme e a atitude dos realizadores de “Bruna Surfistinha”, sinto uma inclinação criminosa ao ato de celebrar esta jovem de classe média alta que decidiu se tornar mulher da vida. Nem mesmo o livro no qual é baseado o filme foi escrito pela jovem. Os méritos literários são do jornalista Jorge Tarquini, que coletou os seus depoimentos e reuniu numa narrativa atraente.
Muitos podem ver-me como careta ou politicamente correto, mas acredito sinceramente que deve haver responsabilidade por parte das mídias que alcançam o grande público. O que vejo pesquisando pela internet é que existe um número imenso de jovens que enxergam a Bruna como um exemplo de vida. Todas as histórias podem ser contadas, porém acho que algumas não devem ser contadas. Questão de responsabilidade.
Caso vivêssemos na Dinamarca ou na Suécia, em que o analfabetismo científico é baixo e os jovens sabem escrever e interpretar textos, eu não estaria preocupado. Mas vivemos em um dos países mais carentes de cultura, em que o analfabetismo funcional atinge todas as classes sociais, a Tati Quebra Barraco é um sinônimo de cultura para exportação, Tiririca é o político com maior número de votos e onde o prefeito ainda pede ao cacique que reze para que chova. A questão que abordo é complexa, não apenas uma opinião a favor ou contra o filme.
Alguns podem achar válido um filme sobre uma pessoa por trás de dois livros que foram best sellers (escritos com a ajuda de um ghostwriter), mas surpreso eu ficaria se livros sobre ciência ou política fossem os mais vendidos neste país. Baixaria sempre vendeu muito por aqui, afirmo sem medo de errar que 99% dos homens que pagarão o ingresso, farão apenas para apreciar a Deborah Secco despida em cenas apimentadas. Mesmo que eles possam hipocritamente afirmar que vão para discutir a respeito da luta contra o preconceito ou se mostrem felizes por haver um filme sobre os marginalizados. Não há nada de racional acerca do desejo de assistir a este filme.
Aqueles que concordam comigo podem acreditar que visualizo um futuro utópico, mas afirmo que é um futuro possível. Recebemos lixo porque damos valor ao lixo. Os norte-americanos possuem mil defeitos, mas eles são patrióticos. Eles poderiam até conceber um filme sobre uma ex-mulher da vida real que tivesse largado sua profissão e ganhado um Nobel, criado uma instituição de caridade ou coisa do tipo, mas duvido muito que os produtores aceitariam contar a história real de uma ex-mulher da vida que, até ontem, estava marcando presença no “Superpop”, tendo ela escrito livros ou não.
Eu estou preocupado com os rumos desta sociedade. Cultura hoje está disponível para todos que quiserem. O cidadão que mora no condomínio de luxo e o que vive na favela podem baixar na internet em segundos três livros do Dostoiévski ou dois pancadões de funk. Tudo é questão de escolha e deve partir de nós. Não existe mais desculpa para a ignorância. Com este pensamento eu modifico meus familiares e alguns amigos, você fazendo o mesmo modificará os seus e, em curto espaço de tempo, se modifica um país. Precisamos celebrar as boas atitudes e os bons caracteres. Mais Nietzsche e Carl Sagan, menos Mulheres Fruta e BBB.
Em uma cena crucial que reflete perfeitamente o enfoque tendencioso da obra, Bruna e suas colegas de profissão estão em um salão de beleza de aparência refinada. Iniciam uma algazarra, todas imitando os gemidos que fazem na cama em alto e bom som. Aquela que parece ser a gerente do estabelecimento se aproxima e educadamente lhes repreende.
Neste momento o filme demonstra suas intenções, pois as jovens se levantam revoltadas e o roteiro nos grita: PRECONCEITO! A impressão que a cena nos passa é que a gerente as expulsou do local por serem mulheres da vida, quando na realidade as únicas culpadas são as jovens, pela atitude extremamente deselegante. Caso as mesmas tivessem se portado com educação, não haveria acontecido o confronto, mas o filme omite isto e nos induz a ver pelo errôneo ângulo: sociedade vs. mulheres da vida.
Em vários outros momentos se percebe o mesmo erro, como quando nos vemos rindo da personagem debochando das esposas que ficam em casa trabalhando para os maridos, enquanto os mesmos se banqueteiam em sua cama, ou na cena mais dramática, quando Bruna encara as consequências de suas escolhas. Nossa consciência e nossos arraigados valores nos levam a ficar contra a personagem por suas atitudes, mas o filme nos direciona por um viés criminoso de vitimização que parece subestimar nossa inteligência.
A irresponsabilidade artística chega ao seu ápice quando a protagonista e suas amigas são paradas por um policial, por estarem dirigindo bêbadas e sem documentos. O roteiro retrata em tom de comédia os “esforços” da personagem em remediar seu erro, enquanto debocha da figura de autoridade. Posso parecer antiquado e moralista, mas em certos momentos me senti tão culpado por estar rindo quanto se o fizesse na perseguição aos judeus em “A Lista de Schindler”. Como obra de entretenimento, ela satisfaz, mas não espere uma visão imparcial sobre a vida da jovem. A trama passa rapidamente e sem muita atenção pelos problemas com as drogas e o lado sombrio da profissão.
“Bruna Surfistinha” celebra as “batalhadoras mulheres da vida”, que intencionam sair de casa para não “dependerem de ninguém” (palavras tiradas do filme), desprezando empregos de menor monta como atendente de loja ou vendedora, preferindo se vender e depender do dinheiro de estranhos.
Hoje, analisemos a trajetória posterior da homenageada (e do próprio filme). Enquanto a obra estava em destaque na mídia, o blog dela lotava de comentários de jovens que diziam ver nela um exemplo de vida, uma mulher guerreira. Raquel Pacheco deixou de ser “Bruna” e marcou presença em programas de televisão de baixíssimo nível, chegando a participar de um reality show. O filme é visto no exterior como pura exploração e, com toda certeza, ajuda a reforçar a já combalida imagem das brasileiras em terras estrangeiras.
A pergunta que fica é: será que somos um país escasso em heróis e personagens valorosos? Quem está lucrando com tanta mediocridade?
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