O Homem dos Sonhos (Dream Scenario – 2023)
Um infeliz pai (Nicolas Cage) de família vê sua vida virar de cabeça para baixo quando milhões de estranhos começam a vê-lo em seus sonhos. Quando suas aparições noturnas tomam um rumo de pesadelo, ele é forçado a lidar com um novo estrelato.
O roteirista/diretor norueguês Kristoffer Borgli conseguiu realizar um pequeno milagre. O conceito altamente criativo, por si só, já prende a atenção, algo que é usual na produtora A24, mas há várias camadas de interpretação que engrandecem a obra, que, com certeza, será beneficiada em posteriores revisões.
A trama se inicia como uma comédia perfeita, inofensiva, daquelas que provocam gargalhadas pelo choque que as situações causam, mas, durante o desenvolvimento do segundo ato, o tom sutilmente muda, aquilo que parecia ser tão absurdo passa a soar muito real, muito próximo, começamos a discernir paralelos perturbadores com experiências recentes, a história toma ares de complexa ficção científica, a tensão vai escalando, até que, no brilhante terceiro ato, você começa a se questionar se não estava acompanhando um apavorante documentário.
O protagonista, vivido impecavelmente por Nicolas Cage, descobre que está aparecendo nos sonhos das pessoas, o fenômeno causa estranheza, mas ele demonstra estar mais incomodado com o fato de que sua postura nestas aventuras oníricas é sempre passiva, refletindo cristalinamente o seu modus operandi diário. Neste ponto da trama, o leitmotiv da zebra é inserido, as suas listras são uma proteção, o animal se torna indistinguível na manada. O perigo de se destacar.
Quando o homem dos sonhos se transforma em uma ameaça brutal, para o espanto do próprio, a situação se torna incontrolável. Ele, apesar de ser um professor sem manchas na carreira, com um currículo invejável, começa a ser importunado por seus alunos. A escola, pressionada pelos adolescentes, é forçada a optar pelo afastamento definitivo.
“Hoje em dia tudo é traumático, virou uma moda, uma piada, alguém teve um dia ruim… trauma… discutiu com um amigo… trauma… tirou uma nota ruim… trauma… as pessoas precisam amadurecer.”
A conversa com o superior reforça os malefícios da distópica cultura do cancelamento, investir de autoridade indivíduos mentalmente confusos, infantilizados, que acatam rapidamente e sem questionamento qualquer sinal de comando, instrumentalizando com fins obviamente danosos a dissonância cognitiva. Tudo vira “gatilho”, tudo ofende, tudo traumatiza, a indústria farmacêutica e os psicólogos agradecem, uma geração de crianças fadada ao abismo existencial, e os adultos lúcidos que poderiam travar este show grotesco estão escondidos debaixo da cama.
“Sonhar é como uma psicose, nosso cérebro decide começar a ter alucinações enquanto dormimos…”
Uma empresa formada por jovens perceptivelmente sem escrúpulos enxerga uma possibilidade de ouro na figura do homem dos sonhos. O roteiro insere neste momento uma discussão filosófica envolvendo a utilização do sonho como forma de vender produtos. Analisando as consequências monstruosas da experiência real de psicose coletiva que o mundo vivenciou nos últimos quatro anos, estas cenas se tornam ainda mais intelectualmente instigantes.
Há espaço até para uma sequência que evidencia o problema de, sendo inocente, o indivíduo abaixar a cabeça e entregar desculpas para uma multidão sedenta por sangue. A esposa, vivida por Julianne Nicholson, sofre diretamente com o impacto da transformação radical de sua rotina. O colega que acaricia seu ego no despertar do interesse midiático, sem pensar duas vezes, passa a evitar sua presença quando a imagem do marido dela se torna negativa.
Os textos críticos estão batendo na tecla de que a mensagem da obra é sobre a obsessão pela fama, mas discordo plenamente, a ideia que o filme propõe em seu simbolismo pode passar despercebida para boa parte do público, principalmente no Brasil, mas ela é corajosa, um alerta contundente para os riscos de se entregar o mundo nas mãos de psicopatas. Manipular a massa com operações psicológicas, fragilizar física e mentalmente a juventude e criminalizar o pensamento, uma escalada de teatralidade que só pode objetivar o totalitarismo supremo.
O desafio ao final de “O Homem dos Sonhos” é repetir internamente que isto foi apenas um filme…
Cotação:
Trailer:
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