Um dos maiores dilemas de um crítico ocorre quando ele se depara com uma obra cheia de falhas, mas que em sua aparentemente equivocada alquimia consegue transmitir sua mensagem com eficiência. O inverso também é comum: filmes tecnicamente perfeitos, mas que terminam sem dizer nada ao espectador.

Não existe uma fórmula certa na arte, uma pincelada impulsiva pode destruir ou engrandecer o resultado final. Como um mágico, o cineasta competente propõe ao público que preste atenção nos mínimos detalhes.

O amante da música pode se emocionar ao escutar um tema de Chopin, mas será que alguma vez já se perguntou a razão que o levou àquela emoção? O compositor depositou em sua obra a sua técnica e sua emoção, mas não construiu cada trecho imaginando que tipo de sentimento queria transmitir para aqueles que a escutariam.

O senhor que sente saudade de sua infância chora no mesmo crescendo que emociona a dona de casa que acaba de se separar do marido.

O mesmo trecho pode despertar emoções diferentes em pessoas diferentes. Com o (bom) cinema é um pouco diferente, pois a emoção é conduzida de maneira objetiva. O receptor (público) comum não percebe o truque, apenas reage instintivamente, chorando ou gargalhando, sentindo ódio ou carinho.

Quando os cordões desta manipulação ficam muito evidentes, pode-se colocar a culpa na incompetência do diretor (ex: o roteiro pede que o público sinta algum carinho pelo personagem que está para ser atacado – a trilha potencializa a tristeza, como se cada acorde extirpasse um segundo de sua vida, mas até aquele momento nenhuma cena nos levou a sentir nada por ele ou o ator falhou em transmitir alguma empatia, fazendo com que o conjunto soe falso, forçado).

Como o diretor e sua equipe conseguem transmitir as mensagens? Imaginem a seguinte cena escrita em um roteiro:

Homem de meia-idade caminha pela rua com um olhar preocupado. Algumas horas antes ele eliminou seu melhor amigo e, após uma árdua batalha existencial, decide ir à delegacia e se entregar.

O diretor A decide filmar o ator caminhando pela rua (luz ambiente), em um travelling feito com uma câmera em um trilho (acompanhando o personagem), entrecortando numa rápida edição, detalhe em seus passos incertos e detalhe em seus olhos. A trilha é composta por instrumentos de percussão em um crescendo até o final.

O diretor B (um pouco mais pretensioso) decide iniciar a cena com uma tomada plongée (enquadramento de cima para baixo, também chamado de “ponto de vista de Deus”), evidenciando a pequenez do homem perante o universo. Corta para um close do homem em ângulo baixo e em spinning (foco no rosto, mas o mundo girando), evidenciando sua desorientação psicológica. A trilha se resume a um violino suave, um proposital contraste, causando ainda mais estranheza no espectador.

O diretor C inicia a cena com uma tela escura em que escutamos apenas o som das batidas rápidas de um coração (único elemento que se escuta durante toda a cena, sem trilha). Um fade-in (gradativa aparição da imagem) nos posiciona então nas costas do personagem, acompanhando seus passos com uma tremida câmera na mão (tudo filmado em preto e branco). A edição insere jump cuts intercalando rapidamente flashbacks do momento em que o homem cometeu o crime e o sangue em suas mãos. Ao chegar à porta da delegacia, as cores retornam e a câmera enquadra o céu, criando a sensação de que ao se entregar e confessar seu crime, ele enfim reencontra sua paz interior e conquista a liberdade.

O diretor D (bastante autoral) decide resumir as três linhas do roteiro em uma única match cut (ex: cena em “2001” de Kubrick, com o osso se “transformando” na nave pela mágica da montagem), conectando o momento em que, na cena anterior, o homem abaixa lentamente seu braço machucado, após deixar cair sua faca (que acerta repetidas vezes no amigo que está deitado no chão), com o momento em que ele entrega suas mãos abertas para receber a algema do policial, já na delegacia. A brusca transição busca não motivar nenhum sentimento de compaixão pelo homem no espectador.

Escolhas simples de um diretor, que são sentidas pelo espectador inconscientemente, podem fazer o público se sentir ameaçado ou não por um personagem em uma cena. A simples aproximação rápida do vilão em direção à câmera, fazendo-o crescer em cena, tornando-se um monstro.

A utilização de algum som característico (já estabelecido em cenas anteriores) do vilão (como um ranger de dentes ou um assovio) em uma cena em que ele ainda não se mostrava presente, certamente causará mais medo do que a gratuita exposição de um ato de violência do mesmo. Hitchcock e Clouzot eram mestres nestas sombrias sutilezas.

Uma das funções do crítico é tentar mostrar para seus leitores a razão que os leva a se sentirem tocados por um filme. Não somente praticar uma arrogante exibição de conhecimento, mas incentivar o leitor interessado a se disciplinar no intento de compreender o que motivou sua emoção em determinada cena.

Com este conhecimento, entenderão melhor os critérios utilizados pelos profissionais ao analisarem os filmes, além de aprimorarem suas próprias experiências sensitivas.



Viva você também este sonho...

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