Dor e Glória (Dolor y Gloria – 2019)
Salvador Mallo (Antonio Banderas) é um melancólico cineasta em declínio que se vê obrigado a pensar sobre as escolhas que fez na vida quando seu passado retorna. Entre lembranças e reencontros, ele reflete sobre sua infância na década de 1960, a relação com sua mãe (Penélope Cruz e Julieta Serrano), seu processo de imigração para a Espanha, seu primeiro amor maduro e sua relação com a escrita e com o cinema.
“Sem filmar, a minha vida não faria sentido.”
O preciosismo detalhista, marca do diretor, está presente neste projeto, cada elemento em cena agrega simbolismo à narrativa, como na cena em que Mallo lê “O Carneiro Carnívoro”, de Agustin Gómez Arcos, que utiliza o romance homossexual como alegoria para criticar a religião organizada e o regime de Franco, enquanto seu antigo amor ganha coragem para revisitar o passado nos bastidores de uma peça.
No ótimo livro, o personagem, ao nascer, se recusa a abrir os olhos por 15 dias como forma de protesto, indignado com o mundo que o espera. Esta inadequação social é parte intrínseca do caráter do artista que finalmente decide se abrir despido de vaidade para o público, a caracterização de Antonio Banderas, em um dos melhores momentos de sua carreira, não dá margem à dúvida, dos figurinos ao penteado, conseguindo até mesmo emular no rosto algumas expressões de Almodóvar, que utiliza como locação o seu próprio apartamento. Mais pessoal, impossível!
Após muitos anos refém de seu próprio estilo, uma assinatura autoral que gradativamente se contaminou com uma carismática afetação, dá gosto testemunhar esta desconstrução consciente, um roteiro que evita floreios desnecessários, refletindo o estado de espírito e a maturidade do seu criador. As linhas temporais são trabalhadas com fluidez e muita delicadeza na montagem, o intuito é coerente com o tom da obra: simplificar o processo, já que a força emocional da trama garante a plena imersão.
Há também algo do “8 e 1/2” de Fellini na forma como Banderas exterioriza a frustração criativa. Mallo já viveu dias de glória, mas é difícil se manter no topo quando o chão desaba sob seus pés, enfrentar os desafios diários sem a leveza da juventude vai exaurindo a sua energia, ele acaba fazendo uso de substâncias psicotrópicas, uma rota de fuga ilusória e de efeito fugaz.
No auge do desespero, a mente busca no escuro a mão do menino que ele foi outrora, vemos as figurinhas com os rostos dos astros de cinema nas páginas gastas do álbum, a arte como terapia, a janela para uma vivência fantástica, muito distante da realidade miserável. Assim como sua mãe encontrava conforto existencial no lindo painel de azulejos que transformava a caverna em lar, o mundo do cinema para o pequeno era uma espécie de invólucro afetivo.
O leitmotiv da reconciliação, seja com o ator amargurado, com o amor secreto que deixou para trás ou com suas próprias escolhas pessoais e profissionais, injeta ares surpreendentes de renovação, o diretor parece encarar o futuro com esperança, a magnífica imagem final sorri para o jovem empolgado que se tornou reconhecido no mundo todo na década de 80. Apesar da melancolia dominante, o fio condutor é o prazer pelas pequenas grandes coisas na jornada, o aroma da sala escura, o gosto do pão que a mãe preparava, a canção despretensiosa que ela cantava enquanto lavava as roupas no rio.
Ao utilizar com emocionante sensibilidade as suas memórias, dores (físicas e psicológicas), arrependimentos e angústias, sem negar o característico bom humor, Almodóvar, perto de completar 70 anos, encanta seus fãs e converte os não-iniciados, entregando uma carta de amor às sinuosas curvas da vida e, principalmente, ao cinema.
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