O gênero de filmes infantis no Brasil é pouco explorado, pérolas como “As Quatro Chaves Mágicas” (de Alberto Salvá) e “O Saci” (de Rodolfo Nanni) são raras exceções de qualidade dentre alguns projetos inegavelmente ruins. Se não houvessem os esforços dos Trapalhões e da Xuxa, a situação seria ainda pior, logo, ao contrário de muitos colegas da crítica, eu valorizo as produções que eles lançaram nas décadas de 70, 80 e 90.
Boa parte dos títulos cumpria a proposta com competência, driblando problemas técnicos e de orçamento que atrapalhavam nossa indústria. Muitos cinéfilos apaixonados hoje, como eu, viveram intensamente na infância a emoção daquelas salas lotadas, guardam com carinho a lembrança e nutrem respeito e, acima de tudo, gratidão, por estes profissionais. Como fazer sucesso neste país da inveja sempre foi crime, a moda entre os pseudointelectuais na área é destruir o encanto, a pureza, mas não é um caminho digno, correto.
Dentre estes filmes, “Lua de Cristal” se destaca por sua mensagem bonita e pela eficácia técnica, tendo sobrevivido bem ao árduo teste do tempo. Ele completou 30 anos, logo preparei um texto especial, com um bônus, uma entrevista exclusiva com Sérgio Mallandro sobre a produção, um cara fantástico, generoso e que soube como poucos se reinventar artisticamente através dos anos, algo muito difícil, principalmente no Brasil.
OC – Serginho, você esteve envolvido desde a pré-produção? Como foi sua entrada em “Lua de Cristal”?
SM – A minha entrada foi o seguinte, a Xuxa me ligou e falou: “Serginho, você quer participar do filme? Você vai ser o meu príncipe”. Eu falei: “Xuxa, tá de brincadeira, EU vou ser o príncipe? O sapo vai virar príncipe. (risos)”. Fiquei amarradão, ela me convidou, eu não participei do roteiro, não participei da pré-produção, só fui convidado e fiquei amarradão, porque eu virei um príncipe, foi muito legal.
OC – Como foi trabalhar com a Tizuka Yamasaki? A rotina nos sets de filmagem foi tranquila?
SM – Olha, quando eu cheguei lá para fazer o filme, todo mundo falava (em tom de orgulho): “A Tizuka Yamasaki é a diretora”. Ela é consideradíssima, cheia de moral, ela tinha feito o filme “Gaijin – Os Caminhos da Liberdade” (premiado em Cannes e Gramado). Eu fiquei empolgado, seria dirigido pela Tizuka, pensei que ela era dona da Suzuki, da motocicleta (risos).
Ela é o maior barato, um amor de pessoa, mas uma diretora muito focada, tomei até uma chamada dela, numa cena que eu tinha que entrar de costas, mas entrei de frente, daí ela mandou um “Corta!” No outro take eu ainda dei uma cambiada, daí ela: “Corta!!”, depois me deu um baita sacode. A Xuxa interviu, pediu para eu prestar atenção no que a Tizuka estava falando, daí eu fiz certinho, entrei de costas, terminei a cena, a Tizuka aplaudiu. Ela foi muito profissional, para mim foi um aprendizado ser dirigido pela Tizuka, uma pessoa fantástica. Lembranças maravilhosas, uma grande diretora que na época estava bombando.
Eu fiquei muito orgulhoso de ter participado, e muito feliz de ter tomado uma bronca que eu jamais esqueci. A gente tem que fazer exatamente como tem que ser feito, fiz duas vezes errado, tomei dois sacodes, e na terceira fiz exatamente como ela pediu, ela aplaudiu, todo mundo aplaudiu, foi o maior barato, tremenda emoção. Vivendo e aprendendo. Grande Tizuka!
OC – Você e Xuxa já eram amigos, então imagino que a interação entre vocês tenha sido incrível. Como foi trabalhar neste projeto com ela?
SM – A Xuxa eu conheço há muitos anos, ela é como se fosse minha irmã, então a gente tinha uma sintonia muito boa em cena, ela é muito profissa, ela se incomoda, fica ajeitando sua roupa, ela ajeita a roupa de todo mundo, fica vendo se o seu cabelo está legal, o visual, ela é uma pessoa que se entrega completamente, de corpo e alma, ao filme. Uma cena em que a gente se divertiu muito foi aquela da guerra de tortas dentro da lanchonete, aquela brigalhada, aquela confusão, e ela tem mania de me imitar, você percebe no filme, tem uma hora em que ela começa a fazer os meus cacoetes, ela estava brincando comigo, não estava no roteiro.
Eu conheci a Xuxa quando ela ainda morava no subúrbio. Quando ela começou a namorar o Pelé, ela falava um monte de gíria, ele perguntava: “Onde você aprendeu isso?”, ela respondia: “É que eu ando muito com o Serginho.” O camarim dela era um luxo, tinha de tudo, tinha sushi, sashimi, tinha anão, tinha girafa, o maior barato. O Ayrton Senna namorava ela nessa época, ela chamava ele de Beco, de vez em quando ele ia lá nos sets de filmagem. Teve um dia que ele ficou lá no camarim com ela, e o segurança na porta, daí eu falava: “Pô, meu irmão, sai daí da porta, deixa a menina à vontade com o namorado”. Lá de fora, o trailer balançando, eu só ficava escutando: “ACELERA, Beco!” (risos) Depois eu brincava com ela: “Hoje o filme foi bom, hein?” (risos).
Tempo bom, a gente se divertia bastante, a Xuxa é uma pessoa muito verdadeira e uma tremenda profissional, sempre preocupada com a equipe, ela ficava: “Serginho, ajeita a roupa, vai ficar mais bonito”. A equipe desse filme era maravilhosa, uma energia muito boa, por isso ele fez sucesso. É um filme que realmente marcou a minha história, ele me dá frutos até hoje, falo sobre ele nos meus shows de stand-up, daí coloco a música e o povo se emociona, fica arrepiado. Na época em que eu fui patrono dos universitários, bastava falar de “Lua de Cristal” que a garotada vinha abaixo, vibrava.
É um filme motivacional, para crianças e adultos, mudou a vida de muitas pessoas, fala de perseguir seu sonho. É um pedaço da história de vida da Xuxa, uma pessoa muito humilde, que veio de uma cidadezinha. “Tudo o que tiver de ser, será”, uma mensagem maravilhosa. Até meu filho, Edgar, que faz cinema em Los Angeles, ele é fã do filme, diz que a história motivou ele a seguir na área.
OC – Você se recorda de algo curioso ou engraçado nos bastidores do filme?
SM – Uma cena que eu nunca esqueci foi aquela em que eu entro no túnel com a mobilete, como Bob, e saía de lá (de príncipe) em um cavalo branco. No dia da gravação, eu, vestido de príncipe, montado no cavalo branco dentro do túnel, as câmeras todas posicionadas lá fora, as gruas e as câmeras preparadas, e eu tinha que gritar na saída do túnel: “Maria! Maria! Eu vou te salvar, Maria!”
Irmão, o cavalo estranhou o túnel, ele disparou comigo, malandro, eu não conseguia mais segurar o cavalo, desesperado, galopando que nem um louco. Quando saí do túnel, eu gritava: “Tizuka, ME SALVA! Eu vou morrer!” E o cavalo não parava por nada. No outro take, a Tizuka perguntou se eu queria um dublê, falei que bastava dar um calmante para o cavalo, um doce, qualquer coisa. Eu recusei o dublê, o pessoal acalmou o cavalo, fiz a cena, controlei o bicho, ficou aquele momento maravilhoso, lembrado sempre pelos fãs, mas ninguém sabe o sufoco que eu passei naquele dia. (risos)
OC – Como foi para você a emoção da estreia, a recepção das crianças naquela sala de cinema, 30 anos atrás?
SM – A sensação é ímpar, realmente inesquecível. Nós fizemos a estreia do filme no horário da manhã, o cinema abarrotado, a criançada animada, elas batiam palma, elas gritavam, elas riam, e, quando veio o momento de emoção, elas choraram, foi incrível. Na hora, eu vi que aquele projeto tinha algo diferente, era um best seller, enxerguei potencial para atravessar a fronteira. E não deu outra, foi recorde de bilheteria, tudo no filme deu certo, as cenas funcionaram, as músicas, as atuações, todo mundo estava bem, ótima produção, ótima direção, foi uma coisa de louco.
Um detalhe legal, quando a Xuxa me chamou para o projeto, ela falou: “Serginho, nós queremos botar o seu nome no título, vai se chamar ‘Xuxa e Sérgio Mallandro na Lua de Cristal’. Você acha bom, você concorda?”, eu falei: “Pô, esse é o maior presente que você está me dando na vida”. O lance é que eles fizeram uma pesquisa na época, eu fazia o programa no SBT e tinha um público formado principalmente por meninos, já a Xuxa tinha um público maior de meninas, então essa união fortificaria o time. Eles então colocaram meu nome no cartaz, fiquei super feliz, foi uma surpresa. Eu lembro que eu estava na casa da Xuxa, quando eles me disseram que iam me dar este presente, fiquei amarradão.
OC – O filme ainda é lembrado com muito carinho, sem dúvida, um dos melhores no gênero realizados no Brasil. Como você enxerga o impacto da obra em retrospecto?
SM – Olha, esse filme é especial mesmo, marcou uma geração, você tinha seis anos de idade na época, uma idade maravilhosa, eu tinha um circo, eu via a molecadinha dessa faixa etária encantada com a história, vinham falar comigo. Estas crianças foram crescendo e revendo o filme, enxergando ele de várias formas, como no “Pequeno Príncipe”, a meninada via a Rainha Xuxa, anos depois, via de outra forma, começa a entender melhor a mensagem do filme, sabendo que você pode ser uma pessoa muito humilde, vinda de um lugar humilde, e, se acreditar no seu sonho e se esforçar, você pode vencer na vida.
A Xuxa no filme era tipo uma “gata borralheira”, muito massacrada, judiada pela tia, pelo primo, e você vê que tudo o ela viveu serviu para fortalecer. O homem não morre quando ele deixa de existir, ele morre quando deixa de sonhar. Todo mundo veio para vencer, conquistar, então quando você bota isso na cabeça, você lembra com carinho daquele filme da sua infância, “Lua de Cristal”, você entende que pode brilhar, que pode encontrar o amor da sua vida. É uma mensagem eterna, passada de pai para filho. Resumindo, é um FILMAÇO, malandragem! É glú-glú, é ié-ié, é bilú tetéia, é farofa-fá, é Lua de Cristal. (risos)
OC – Eu, como roteirista e cineasta independente, imagino várias maneiras de se continuar a história, mostrando os personagens adultos, no mundo de hoje, aproveitando o revival dos anos 80 e 90, como a série “Cobra Kai”, que resgatou a franquia “Karatê Kid”. Vocês já cogitaram um “Lua de Cristal 2”?
SM – A Xuxa tem muita vontade de fazer “Lua de Cristal 2”, já falou várias vezes comigo, mas até agora não encontrou um roteiro adequado. A ideia dela é que o Bob ficou rico, dono de uma lanchonete enorme, e ela ficou pobre. Até dei risada quando ela falou, é só em filme, né? (risos)
OC – Serginho, te agradeço demais a generosa atenção, você fez parte da minha infância, foi um prazer ter este contato contigo. Peço, por gentileza, que deixe uma mensagem final para o meu público.
SM – Eu fico muito feliz de ter participado da sua infância, Caruso, fico feliz de saber que você está fazendo seus curtas, vencendo, vou ficar amarradão se um dia a gente fizer um trabalho juntos. Adoro fazer cinema. A minha missão no mundo é levar alegria para as pessoas, o Chico Xavier disse isso para mim, então toda vez que eu realizo um trabalho, seja no cinema, teatro ou TV, e faço as pessoas se divertirem, eu fico super feliz, porque esta é a minha missão.
OC – Missão que, pode ter certeza, está sendo cumprida com louvor, Serginho.
Lua de Cristal (1990)
Maria da Graça (Xuxa Meneghel) chega à cidade grande para morar com sua tia Zuleika (Marilu Bueno) e seus primos Mauricinho (Avelar Love) e Cidinha (Júlia Lemmertz). O trio vive atormentando sua vida, fazendo-a trabalhar incansavelmente na casa em que moram. Em meio aos problemas, ela conhece Duda (Duda Little), sua vizinha, e Bob (Sérgio Mallandro), um jovem desajeitado, que se tornam seus amigos. Bob consegue um emprego para Maria, que pode então realizar seu grande sonho: ter aulas de canto.
“Faz de mim estrela, que eu já sei brilhar.”
As meninas da época imitavam a Xuxa e ficavam fascinadas com a rebeldia divertida nos programas do Sérgio Mallandro. Os meninos queriam namorar a Xuxa e se identificavam com o estilo traquinas do Sérgio, então foi um golpe de mestre reunir os dois nesta terna fábula com toques de “Cinderela” e do clássico “Nasce Uma Estrela”.
Um elemento pouco lembrado na equação de sucesso é a trilha sonora composta por Ary Sperling, enriquecida pela ótima música-tema de Michael Sullivan e Paulo Massadas, que conseguem transmitir a aura onírica do roteiro de Carlos Alberto Diniz e Luís Carlos Góes, elegantemente captada na fotografia de Edgar Moura, com destaque para a utilização da luz nas cenas ambientadas na floresta das fadas.
A direção segura de Tizuka Yamasaki acerta ao evitar o pastiche, a abordagem é honesta, respeitando o arco narrativo dos personagens, sem o excesso de piadas internas e product placement inadequado que, infelizmente, prejudicavam vários similares. O início sóbrio, sem fazer concessões comerciais, mostrando a despedida entre mãe e filha no ponto de ônibus, seguido pelos flashbacks da infância da protagonista, já deixa claro que a intenção principal é contar uma história, respeitando a inteligência das crianças e de seus pais, não apenas vender ingressos, discos e bonecos.
A utilização do príncipe como alegoria clara (ele já aparece à distância e de costas no flashback da infância de Maria) e a ressignificação do cenário da escola de música (e seus alunos) como moldura para o mundo fantasioso da floresta, algo que remete diretamente à “O Mágico de Oz”, também agregam contornos mágicos raramente trabalhados no cinema brasileiro, usualmente carente de lirismo, evidenciando (de forma instigante para seu público-alvo) no desfecho que a transformação que ocorre no tímido e desajeitado Bob é interna, ele ganha coragem tocado pela atitude obstinada da mulher que ama.
Há também uma transição sensorialmente criativa ainda no primeiro ato, contrastando a idílica floresta com os sons incômodos da selva urbana, deixando perceptível para o público, sem necessidade de diálogos, os efeitos do choque cultural na vida da jovem. Opções estilizadas que denotam o estofo de referências cinematográficas da diretora, diferencial que favorece a atemporalidade da obra.
Gosto bastante de um detalhe sutil na execução coerentemente teatralizada do espetáculo musical no desfecho, provavelmente algo inconsciente, Maria, no momento em que supera suas limitações, logo antes de soltar a voz, quebra a quarta parede e, por milésimos de segundos, olha diretamente para a câmera, como que incentivando o espectador à dança plena em simbologia.
Lindo relembrar esses momentos mágicos! Eu, na época, já mais velha, curti como uma criança. Infelizmente, hoje, não temos mais esse tipo de entretenimento “encantado”. Faz muita falta. Parabéns pela bela entrevista com o nosso Mallandro!