Eu fui questionado em 2016 por um leitor no Facebook sobre “Os Dez Mandamentos”. Respondi que gostava demais da trilha sonora de Elmer Bernstein e da atuação sempre imponente do grande Charlton Heston, mas que não era um fã do diretor Cecil B. DeMille, ainda que considere este o seu melhor projeto. O leitor enviou então um ponto de interrogação e um bonequinho coçando a cabeça. E, tropeçando nas letras, explicou que estava se referindo ao projeto nacional que estreava naquela semana. Não acreditei no que estava lendo, não era possível. Será que ele não sabia que eu sou um crítico de cinema?
Tem outros profissionais gabaritados em crítica televisiva, crítica de reality shows e até mesmo gente que é paga para flagrar as subcelebridades tossindo na rua. Eu não era a pessoa certa para aquele questionamento, então expliquei isto gentilmente para o rapaz, ressaltando que analiso também filmes feitos para televisão, mas que, em hipótese alguma, eu perderia tempo analisando um remendo extraído de mais de 150 capítulos de uma novela, especialmente uma com o padrão de qualidade da emissora que esbanja
hoje o lucro advindo de décadas de ofertas de pobres coitados, um dinheiro maldito conquistado em uma nação em que a inacreditável isenção tributária nas igrejas possibilita todo tipo de absurdos, como o poder milagroso do paletó abençoado, da fogueira santa, da chave ungida, da meia e das vassouras consagradas. E não é uma piada. Eu tenho nojo destes malandros que se aproveitam do analfabetismo científico do povo mais humilde, eu não poderia, em sã consciência, cogitar a hipótese de valorizar qualquer tipo de entretenimento que seja financiado por este coletivo de canalhas aproveitadores.
Como artista, compreendo que meus colegas aceitem trabalhar em projetos da emissora, a vida não está fácil para ninguém, mas eu não aceitaria qualquer proposta que viesse deles. Eu não vou nem comentar os atos que causam vergonha alheia, muitos deles propagados na mídia, sobre a compra de ingressos e as salas quase vazias, sinal óbvio de lavagem de dinheiro, isto é o mínimo que se pode esperar de uma iniciativa tão grotesca. Vergonha alheia sempre foi uma especialidade desta rede de profissionais talentosos na arte do
trambique. Escrevo tudo isto sabendo que estou atingindo apenas aqueles que já têm esta consciência. O público da novela, aqueles que buscam nas sessões evangélicas neopentecostais a cura de enfermos, não se interessa em ler críticas de cinema. Estes entregam até a chave de casa para os pastores, eu não preciso citar aqui os muitos casos tragicômicos que ilustram as manchetes dos jornais. A perfeita massa de manobra, indivíduos incapazes de praticar o raciocínio lógico, o questionamento crítico, doutrinados na prática da dissonância cognitiva, zumbis esfomeados, um gado que vive para enriquecer um sistema podre que cresce assustadoramente, com tentáculos que dominam perigosamente até a política.
Agora, o novo “sucesso de bilheteria” das salas vazias é “Nada a Perder”, cinebiografia do líder da organização. Como sempre digo, sou contra qualquer tentativa de censurar arte, filmes de todas as ideologias devem existir. É óbvio que o roteiro visa unicamente santificar a figura do homenageado, o objetivo é atrair mais fiéis, para que mais malas de dinheiro
sejam retiradas de helicóptero dos cultos. A proposta da obra é odiosa, celebrar uma figura pública que enriqueceu explorando a fé alheia, eu tenho todo direito de repudiá-la, apesar de respeitar sua existência. Ninguém obriga o indivíduo a entrar na igreja, podemos apenas tentar compreender o impulso que leva alguém a acreditar em exorcismos de endemoniados em 2018. E, analisando lucidamente, eu enxergo neste “fenômeno” o sintoma de um problema grave. Na esteira da onda conservadora que está tomando o país, estes estelionatários dos templos encontram público sedento por seus discursos rasteiros de ódio e segregação.
O Brasil está entregue na garra dos lobos, aplaudidos por um povo que se afasta cada vez mais da literatura. Um povo que lê pouco e escreve mal, suja as ruas e destrói o transporte público que utiliza. O governo é o reflexo cristalino do inconsciente coletivo do brasileiro. Os absurdos se acumulando, o silêncio alarmante dos omissos ficando cada vez mais
constrangedor, os espertos conquistando cada vez mais espaço nos veículos. A única esperança reside na educação, no amor pela cultura, no desejo constante pelo autoaprimoramento.
Excelente esse espaço Li seu comentário sb o filme Nada a Perder Ah! Se todos pensassem assim… Ceci Lohmann