Um Tiro no Escuro (A Shot in The Dark – 1964)
O embrião desta obra-prima da comédia era um roteiro que Peter Sellers leu e odiou. Ele entregou a trama nas mãos do diretor Blake Edwards, que, auxiliado por William Peter Blatty, autor de “O Exorcista”, solucionou o problema ao substituir o protagonista insosso pelo personagem coadjuvante de “A Pantera Cor-de-Rosa”, Jacques Clouseau, que, até aquele momento, não passava de um esboço interessante trabalhado por Sellers, sem os elementos característicos que viriam a eternizar o atrapalhado inspetor francês.
Enquanto o filme anterior era um veículo para o charme de David Niven, nesse, com total liberdade narrativa garantida por um fiapo de história, o diretor teve a chance de explorar ao máximo cada situação, procurando o potencial cômico até mesmo nas cenas menos convencionais.
A opção injetou um frescor único, potencializado pela postura séria do protagonista, que verdadeiramente acredita ser o mais competente para o serviço, para o desespero de seu superior, interpretado pelo ótimo Herbert Lom.
Ao iniciar com um longo plano-sequência, emoldurado pela trilha de Henry Mancini, estabelecendo o cenário confuso da cena do crime, o roteiro já brinca com o incoerente conceito de culpabilidade conveniente da literatura de mistério, em que, por vezes, nem mesmo o autor parece saber a identidade do criminoso até começar a escrever o último capítulo.
Assim como o Hercule Poirot, de Agatha Christie, Clouseau faz questão de reunir todos os suspeitos para uma longa exposição de sua perícia, antes de apontar o culpado.
O problema é que, diferente do belga orgulhoso, a cópia francesa é incapaz de caminhar dois passos sem pisar nos pés de alguém. Até mesmo a simples teatralidade do cronometrar de relógios se torna um obstáculo, somente superado pela forma desastrada com que o inspetor pratica a arte da sinuca.
A beleza da suspeita mais óbvia, vivida por Elke Sommer, é realçada com ares oníricos pela fotografia de Christopher Challis, transmitindo para o público a mesma sensação de fascínio que ela causa no protagonista.
Graham Stark, como o assistente do inspetor, rouba a cena em todos os seus momentos, conseguindo transparecer em seu rosto o desprezo que sente pelo colega, potencializando o efeito cômico das tiradas de Sellers.
Vale perceber também como Edwards emula Hitchcock, algo que já se mostrava presente no filme anterior, com claras referências ao “Ladrão de Casaca”. Gosto especialmente da repetição visual, que me remeteu ao estilo de Jacques Tati, com os disfarces excêntricos do herói sendo impiedosamente desmanchados pela ação policial, por falta de licença para executar os serviços.
E, claro, uma das cenas mais hilárias, em sua simplicidade, da história do cinema: a nobreza de Clouseau ao escutar gritos femininos em um salão fechado. Wes Anderson prestou clara homenagem em “O Grande Hotel Budapeste”.
- Trilha sonora composta pelo grande Henry Mancini: