Acho interessante refletir sobre o que se perdeu nestes séculos de doutrinas que, por trás de frágeis discursos de paz e ideais retrógrados, na realidade ambicionam somente o acúmulo de ouro e a manipulação conquistada através do poder, tudo o que não fazia parte dos planos do Jesus Cristo bíblico.
Não pretendo confrontar Luis Buñuel e Mel Gibson, eles comandaram dois projetos ótimos no que se propõem. Acho interessante estabelecer uma comparação entre a temática desenvolvida por dois cineastas com opiniões opostas, ambições contrárias. O diretor americano/australiano é passional em sua abordagem fundamentalista religiosa, porém numa análise mais profunda, respeita menos o protagonista que o diretor espanhol, passionalmente ateu.
No “Simão do Deserto” (Simón del Desierto – 1965), reconhecemos facilmente as críticas e os questionamentos de um homem que rejeita a fé cega, mas fica evidente seu entendimento sobre a importância de Jesus, não aquele comercializado, seu papel na sociedade. Buñuel já inicia o filme com uma poderosa crítica que continua atual, inclusive incisiva contra homens como Gibson, que buscam endeusar o homem agonizando na cruz, agradecendo por cada gota de sangue derramada, anestesiando assim todos os seus ensinamentos de amor e compaixão.
Na cena, os seguidores de Simão, que já se mantinha em sacrifício orando sobre um pilar no meio do deserto, por seis anos, seis meses e seis dias, conseguem fazê-lo substituir seu pilar por outro tremendamente mais alto. No “A Paixão de Cristo” (The Passion of The Christ – 2004), Gibson explora cada naco de carne que é extirpado do corpo do protagonista, forçando uma conexão empática nascida de uma profunda culpa. O sofrimento parece ser mais importante que sua filosofia.
Outras duas pequenas cenas na obra de Buñuel expõem claramente feridas expostas do catolicismo. O diabo utiliza a beleza de Silvia Pinal para provocar, de forma bem-humorada, Simão, seduzindo-o revelando partes de seu corpo, reforçando o papel da mulher como objeto, logo, pecaminoso, a ser rejeitado. Já em outro breve momento, um homem clama por um milagre que o faça voltar ao trabalho, pois perdeu suas mãos em um acidente. Simão atende seu pedido, realizando o milagre, somente para perceber que o homem checa com desinteresse suas novas mãos, levantando-se e partindo sem qualquer cerimônia.
Aqueles que se dizem seguidores dos ensinamentos de Jesus seriam tão tolos a ponto de caírem em qualquer conto do vigário? A sua filosofia vai contra tudo o que se vende em seu nome no mundo moderno, mas qualquer terno mágico ou descarrego teatral ilude os mais carentes. A mercantilização dos milagres anestesiou a beleza que havia em suas palavras. Como o homem sem as mãos no filme, os devotos de hoje adentram igrejas e templos com a esperança de testemunharem um show pirotécnico de “aleluias” e “glórias” berradas, corpos que se lançam ao chão em histeria coletiva.
Ao final dos cultos, atravessam a rua e voltam para casa com a sensação de dever cumprido, mas e o aprendizado? Aquelas palavras bonitas nos intervalos entre os pedidos de ofertas em boleto ou depósito bancário. O pilar está tão alto, que mal se nota o homem que ora em silêncio em seu topo. Profético Buñuel.