Com “As Aventuras de Pi” (Life of Pi – 2012), ocorreu um fenômeno curioso. Boa parte das pessoas que o assistiram não captou a essência de sua mensagem, dando margem a conclusões equivocadas e simplistas como: “um filme para religiosos, ou que os religiosos irão gostar mais”, “um filme para crianças, devido ao tigre e outros animais”, “um filme bobinho”, entre outros. Excetuando-se aqueles que expuseram opiniões negativas acerca de sua temática, houve uma boa parte do público brasileiro que o rejeitou à época por causa da polêmica envolvendo o escritor Moacyr Scliar.
Yann Martel obviamente usou um lampejo criativo de Scliar (ele cita isto nas próprias páginas), mas são livros bastante diferentes. Forçar a ideia de plágio é ignorar a história da literatura. Cervantes utilizou várias fontes de inspiração para seu “Don Quixote” (“Amadis de Gaula” e as histórias folclóricas espanholas, que serviram de base para as aventuras de Sancho no segundo tomo, por exemplo), mas ninguém questiona o valor de sua obra.
O próprio Shakespeare fazia uso de inspirações alheias, algo comum durante a Renascença, levando muitos estudiosos de sua obra a corroborarem algo que ele afirmava: “Eu selecionei ideias interessantes de alguns livros bastante medíocres e as melhorei.”
Não é muito diferente do argumento utilizado pelo escritor canadense, referindo-se ao brasileiro, mas ninguém deprecia o trabalho do baluarte inglês. O português Camilo Castelo Branco utilizou “Romeu e Julieta” (livro que, por sua vez, Shakespeare criou utilizando como molde o trabalho de Arthur Brooke: “The Tragicall Historye of Romeus and Juliet”) como molde para seu excelente “Amor de Perdição”.
A mesma ideia pode servir de inspiração para várias histórias maravilhosas e diferentes entre si. Leonard Bernstein, Arthur Laurents e Stephen Sondheim deveriam ter sido processados por utilizarem o “Romeu e Julieta” (de Shakespeare, mas antes, de Brooke) como forte inspiração para “Amor, Sublime Amor” (West Side Story)?
Muito pouca coisa do que lemos ou vemos no cinema atualmente pode ser tida como genuinamente original. Desmerecer o belo trabalho de Martel é fechar os olhos para os vários simbolismos preciosos que seu livro apresenta. Mas, deixando de lado as polêmicas, analisarei o filme pelo que é: uma simples e bela explicação sobre o sistema de crenças no ser humano, algo capturado com maestria pela direção sensível de Ang Lee. Vale destacar que irei analisar a obra com spoilers nos parágrafos a seguir.
Pi foi uma criança indiana extremamente curiosa, como todas, disposta a não se contentar com apenas uma explicação para os muitos mistérios da vida. Com sua ingenuidade, aventurava-se nas histórias fantásticas que sua mãe lhe contava sobre os deuses do hinduísmo.
Em uma atitude inconsequente, típica da idade, acaba conhecendo um porta-voz do catolicismo que desnorteia sua mente ao inserir a presença de um único Deus, que havia enviado seu filho à Terra, para que sofresse pelos humanos, atitude que o menino considera ilógica.
Ainda não satisfeito, o menino abraça o islamismo, fascinado por seus rituais. Ao ser questionado, afirma com convicção que a fé é uma “casa de muitos quartos”. Estes “quartos” podem possuir estilos arquitetônicos diferentes, serem pintados de cores radicalmente contrastantes, mas estão inseridos em uma mesma “casa”.
As religiões foram formas que os homens criaram na tentativa de entender o inexplicável, iluminar a escuridão, que com o passar dos séculos, com a ajuda da ciência, tornou-se cada vez menos amedrontadora. Todas elas são nascidas da mesma dúvida, do mesmo essencial questionamento: Quem nós somos? De onde viemos? Para onde vamos?
O tigre é, como grande parte do filme, uma metáfora (seu nome original é “Thirsty”, “Sedento”, exatamente como o menino estava ao adentrar a igreja católica), o seu lado instintivo, o elemento que, quando ainda criança, destrói sua inocência (ao vê-lo se alimentando) e retira brutalmente de sua vida o conceito da fantasia, a crença na ideologia espiritual. Ele tentava dialogar com este elemento interior, encontrar uma harmonia, mas percebe ser algo impossível.
Atravessando uma adolescência no chato mundo real, o jovem busca encontrar algum sentido para sua existência nos grandes filósofos e pensadores, a câmera enfoca Dostoiévski e Camus. Ele se mantinha curioso, alimentando aquela necessária fagulha questionadora, mas com os pés no chão. Ocorre então o evento transformador, a tragédia em sua viagem marítima.
A embarcação leva o nome de “Tzimtzum”, detalhe que muitos nem se atentam, que na simbologia da cabala significa: “uma forma de se manter presente em sua ausência”. Assim como o número irracional “Pi”, não é coincidência, o “Tzimtzum” transforma um círculo infinito em uma linha mensurável.
Após o filme estabelecer fortemente, mesmo que em uma breve cena, os personagens que serão os coadjuvantes na aventura marítima do jovem (Gérard Depardieu, com sua marcante presença física, não estaria no projeto para apenas uma cena, caso não fosse extremamente importante delinear seu personagem: o cozinheiro), somos apresentados ao segundo ato.
Durante ele, muitos espectadores, metidos a sabichões, tendem a debochar do que estão vendo, acreditando estarem diante de algum projeto bobinho da Disney. Esta percepção equivocada acaba fazendo com que não percebam, ao final, o poder de sua mensagem, que é transmitida com elegância e de forma rápida.
O roteiro ainda mastiga (o que achava desnecessário, mas depois, analisando a reação de muitos, considerei uma decisão mercadologicamente compreensível) os significados, colocando o personagem do escritor para reforçar cada descoberta.
O tigre novamente é apresentado como sendo parte do próprio garoto, quando ele sai de seu esconderijo (é o último a aparecer, pois o jovem somente ativa o animal quando se percebe acuado e sem alternativas) e ataca a hiena (o cozinheiro). A forma como o enquadramento é feito deixa claro que o tigre ludicamente se projeta de dentro dele, enfrentando um problema que Pi não se mostrava apto a resolver.
Ao mesmo tempo em que ele fica feliz por descobrir este seu lado mais corajoso, animalesco, passa a temê-lo, pois vai contra tudo em que acreditava. Várias cenas apresentam-no como que desafiando o tigre. Ele percebe então que a sua única forma de sobreviver é disciplinando seus instintos, domando a fera, evitando que seu elemento animalesco sobrepuje seu lado racional, humano.
Caso ele se deixasse levar pela fera, acabaria se tornando como a hiena (o cozinheiro), o que o deixaria incapaz de sobreviver no mundo civilizado após seu resgate, como muitos soldados após o conflito, que acabam em hospitais psiquiátricos.
O tigre desaparece assim que ele é encontrado na praia, sem olhar para trás. O jovem se emociona, pois gostaria de dizer: “eu te amo e obrigado por me manter vivo”. Ele é grato àquele “tigre” que o manteve “sedento” ao longo da árdua jornada, mas sabe que a única forma de retornar para a sociedade (e ter uma vida normal, constituir família) é deixando o “tigre” desaparecer, mesmo sabendo em seu interior que ele sempre estará lá, na densa floresta da alma humana, aguardando caso sua presença seja requisitada.
Ao final, nada é deixado sem explicação para aqueles que prestaram atenção, resultando num emocionante e longo monólogo do garoto, explicando a real versão da história, a traumatizante experiência envolvendo sua mãe. A questão final proposta pelo personagem em sua contraparte adulta não foi entendida por muitos: “em qual versão você prefere acreditar?”.
Esta questão encerra em si a melhor definição que já conheci sobre o sistema de crenças. O objetivo do escritor que visita Pi é escutar algo que o levará a acreditar em Deus. Ele então é apresentado a duas versões de uma mesma história, em ambas, o garoto sofre bastante e sobrevive ao final. Uma é permeada de simbologias, elementos fantásticos, a baleia, por exemplo, animais e ilhas exóticas. A outra é dura, triste, sem brilho, exatamente como a vida pode ser.
O ser humano, assim como o escritor, normalmente escolhe acreditar naquela mais fantasiosa, plena em rituais e elementos sobrenaturais. Acreditar em Deus, apoiar-se em religiões, nada mais é que uma necessidade humana natural, mesmo que como opção, perante a dura realidade de um mundo, em grande parte, ainda inexplicável.
Ótima interpretação! Adoro seus artigos! Tenho apenas uma pergunta quanto “As Aventuras de Pi” (que aliás, eu também gosto muito!): De onde você tirou essa interpretação? Trata-se de sua própria observação sobre o filme ou você a tirou de relatos do escritor e/ou de outros envolvidos na criação da história?
Grato pelo carinho, Marcus. A minha interpretação é (como tudo) um amálgama do que já li na vida, sempre fui muito curioso, leitor ávido.
Abração!
Parabéns, o filme é realmente lindo e pra mim não deixou dúvidas, ele por si só se explica. É incrível como uma história simplesmente trágica pode se tornar tão linda. Quanto aos seus comentários, sempre tenho vontade de aplaudi-los de pé.
Octávio, gratidão. Esse filme foi um dos que mais mexeram comigo após assisti-lo. Sai do cinema extasiado com a beleza das imagens, com o conteúdo da história, e, principalmente, com a pergunta sobre qual versão era a preferida. Do “afloramento” do tigre, faço um paralelo com o conceito de “sombra, de Jung. Perfeito. Depois, comprei o livro e li também a história do Scliar. Em nenhum momento vi plágio, mas uma semente que fez brotar esse belo filme. Gostei muito de sua análise. Um forte abraço.