O homem por trás do mito…
Stanley Kubrick é visto por muitos cinéfilos como um homem que não conseguia expressar emoção em seus filmes, algo que bastaria uma sessão de “Glória Feita de Sangue” (especialmente sua cena final), para provar ser uma ideia equivocada.
Outro senso comum alimentado por décadas coloca-o na posição de alguém enigmático, recluso, que fazia filmes sem pensar no público (algo que hoje atribuem, mas com razão, ao Terrence Malick). Com certeza não era um “arroz de festa”, mas sua extensa família afirmou em entrevistas após seu falecimento, o quanto aquele homem era terno, conselheiro e bonachão.
Ele era reservado, elegante, fascinado por Napoleão Bonaparte (uma cinebiografia que nunca conseguiu realizar, apesar de ter escrito o roteiro) e admirava ficção científica e o cinema aventureiro feito por Steven Spielberg e George Lucas.
Uma de suas maiores frustrações artísticas era demorar tanto entre um projeto e outro, pois era bastante criterioso acerca dos assuntos que abordava. Seu objetivo era realizar algo fantástico e lucrativo como “Star Wars”, sem se afastar dos questionamentos filosóficos. Por esta razão, entregou seu projeto “A.I. – Inteligência Artificial” nas mãos de Spielberg, pois sabia que ele conseguiria incutir no roteiro aquela necessária ternura que, em suas mãos, poderia ser subutilizada.
Quando retiramos a camada mítica, percebemos que o homem era apenas um perfeccionista competente, com uma versatilidade impressionante (cada obra sua abraçava um gênero completamente diferente) e que, como muitos nesta área, faleceu sem ter a exata noção do quanto foi bem-sucedido em seus intentos (por exemplo, se sentia culpado por “Laranja Mecânica”, pelo qual recebeu ameaças direcionadas, inclusive, à sua família) e de sua importância na arte que ajudou a evoluir.
Mensagem cifrada expondo a farsa…
Deixando o lado humano e abraçando o mito, acho fascinante algumas das teorias conspiratórias que envolvem o cineasta.
Ele teria se envolvido em uma secreta missão para o governo americano, ficando responsável pela filmagem da ida do homem à lua em um estúdio, que seria transmitida ao vivo pela televisão para o mundo (algo que, em plena Guerra Fria, seria muito interessante para os norte-americanos) em 1968. Anos depois, a descoberta do Cinturão de Van Allen (com uma radiação que impediria a chegada do homem à lua), corroborou para que esta teoria voltasse à baila.
Como existem teorias conspiratórias até sobre o ataque às Torres Gêmeas (com direito a aviões holográficos), fica complicado separar o joio do trigo, ainda que muitas destas ideias sejam até coerentes, afinal, os olhos e o raciocínio lógico (no caso citado) enxergam claramente uma demolição controlada.
O caso é que, de acordo com esta teoria, Kubrick teria se empenhado nos anos seguintes a revelar para o mundo este segredo, distribuindo pistas em seus filmes. “De Olhos bem Fechados” (Eyes Wide Shut – 1999), baseado em um conto de Arthur Schnitzler, é o mais enigmático (neste sentido), pois aborda abertamente a existência de sociedades secretas, que punem severamente aqueles que descobrem a terrível verdade.
O fato de que o diretor faleceu cinco dias após terminar a primeira exibição do filme completo aos executivos do estúdio, ajudou a propagar este mistério. Seria aquele conto sobre uma seita composta por mascarados, que realizava festas dignas dos tempos de Calígula, mais uma tentativa do cineasta avisar o público das farsas que ocorrem por baixo de nossos narizes diariamente?
A expressão “Eyes Wide Shut” significa aquilo que está além do que conseguimos enxergar em uma passada rápida de olhos.
Abra os olhos…
A verdade é que Kubrick comprou os direitos do conto “Dream Story” em meados da década de sessenta, provavelmente antes do primeiro pouso lunar, interessado na alegoria sobre a complexidade inerente às relações românticas em um mundo que não distingue o sonho da realidade.
Um tema que ele já perseguia desde 1962. Durante a década de setenta, o cineasta chegou a imaginar Woody Allen (que ele admirava especialmente por conseguir realizar um filme por ano) no papel principal. Durante a década de oitenta, chegou a pensar em adaptá-la como uma comédia, protagonizada por Steve Martin. Somente na década seguinte, ele conseguiria iniciar a tão sonhada produção.
Breve análise complementar…
A campanha de marketing prometia “o filme mais provocador de todos os tempos”, o que acabou frustrando aqueles que foram à sessão esperando algum estímulo que não fosse o intelectual. Kubrick já debocha logo na primeira cena. Sem cerimônia alguma (uma perfeita antítese de Brigitte Bardot), Nicole Kidman se despe em frente ao espelho, mas antes que possamos piscar os olhos, uma tela negra apresenta o título, como uma porta que se fecha, impedindo nosso olhar.
É como se o diretor quisesse saciar esta curiosidade logo, para que a atenção pudesse ser direcionada aos elementos realmente importantes. Os filmes de Kubrick são feitos para serem vistos várias vezes, pois sempre se tornam (a cada revisão) mais interessantes. À primeira vista, “De Olhos bem Fechados” me incomodou, cheguei até a afirmar que era o pior filme na carreira dele. Hoje, após tê-lo revisto pelo menos umas dez vezes, já o coloco entre os cinco melhores.
Ele deixa implícito que os figurões da alta sociedade compõem uma sociedade secreta (sendo as festas uma analogia a outros tipos de manipulações políticas e sociais), donos do mundo brincando irresponsavelmente de deuses, no breve momento em que a jovem (vivida por Leelee Sobieski) filha do vendedor de fantasias, sussurra no ouvido do protagonista: “Você deveria ter uma capa forrada de arminho (símbolo da realeza, pele que vestia os monarcas)”.
Elemento que rima perfeitamente com o forte diálogo entre o protagonista (vivido por Tom Cruise) e um dos membros desta seita (que não revelarei, para não estragar a experiência), que revela: “Quem você acha que estas pessoas são? Eles não eram qualquer gentinha. Se eu lhe dissesse seus nomes… Não, eu não lhe direi seus nomes… Mas se eu dissesse, acho que você não dormiria tão bem esta noite”.
As máscaras utilizadas como um ritual que elimina a individualidade, algo fundamental no processo de engenharia social.
Em outro momento, Cruise fala com sua esposa, mentindo sobre seu encontro com uma mulher da vida, enquanto próximo à câmera pode ser lido: “Introdução à Sociologia”. O título do livro não foi sutilmente colocado ali sem um propósito, mas espelha perfeitamente a ação que está ocorrendo. Uma dica de que devemos interpretar a obra pelo ponto de vista sociológico, não psicológico.
Este, como todos os filmes do diretor, não é sobre um indivíduo, mas sobre toda a civilização, sobre nossa evolução pelas páginas da História. Podemos crer, inclusive, que todas as ações que o filme mostra acontecem somente na mente do protagonista. Nada é por acaso nos elementos que emolduram os personagens, como na manchete de jornal que afirma em letras garrafais: “Sortudo por estar vivo” e na palavra “Eros” em um sinal em neon.
As pinturas (todas feitas pela esposa do diretor: Christiane) que decoram as paredes da mansão do casal, evidenciam a função ornamental que aquela arte exerce naquele ambiente, como uma camada fina de verniz.
Como a aliança que a esposa mostra para o homem que a cortejava, mais como a exibição de uma corrente que dolorosamente a prendia ritualisticamente a uma relação falida. Enquanto isto, a fidelidade de seu marido é colocada em risco, com a sedução de duas belas modelos, que o convidam a segui-las “até o final do arco-íris”. Não é por acaso que o nome da loja de fantasias que ele visitará na sequência chama-se “Arco-Íris”.
Muitos são os enigmas a serem identificados nesta obra, sendo o maior de todos o seu próprio criador. Será que ele, como George Orwell, fez parte do esquema em algum momento e passou o resto da vida tentando alertar sobre a verdade em suas obras?
Pra mim um dos melhores filmes da década de 90.
Parabéns Otavio pela análise sempre oportuna do filme de Kubrick, são muitos os labirintos de paixões que o filme convida a percorrer, mas a sua sutileza e assertividade argumentativa deixam ver sua admiração por este que foi um dos grandes diretores da História do Cinema. Esperemos que as recentes descobertas de roteiros inconclusos venham à tona para continuar desfrutando do talento e criatividade desse gênio por trás das lentes.
Parabéns por essa análise. Por acaso ontem revi.E complementou vc.muitos mistérios que Esse filme carrega. Como vc.na 2 primeiras vezes que vi não gostei…ou não compreendi.
Mas tem que se ver sim várias vezes.Quase um puzzle.
Ótima resenha. Sempre vejo esse filme com diversos olhares. Um deles é sobre um homem que busca sexo fora do casamento. Assim, simples e social. Nada filosófico ou psicológico. Algo social e físico. Uma busca por aventura.