Holy Motors (2012)
A obra inicia com uma plateia que dorme, apoiando-se uns aos outros, em uma sala de cinema. O diretor Leos Carax caminha (“Le Dormeur” – adormecido) em um sonho lúcido, disposto a convidar seu público a acompanhá-lo, retirando-o do conformismo, da comodidade. Ao seu lado na cama, um cão, reforçando a representação pictórica do sonhador. Ele atravessa um portal e adentra a sala de cinema pela saída de emergência. Uma criança dá seus atrapalhados primeiros passos atravessando o corredor, representando o despertar da vida, seguida de um cão negro, hellhound, que no folclore guarda os portões da finitude.
Uma vida inteira dedicada a um ideal, algo que o perturba e invade seus sonhos. No fundo se trata de uma busca por si mesmo, desafiando a mortalidade diariamente, temendo o inevitável, representado no incrível desfecho, o leitmotiv: todos tememos terminar no ferro-velho. Esse início apresenta de forma surrealista, o dedo que se transforma em chave, a força motriz do projeto: uma tentativa de um diretor apaixonado por seu ofício, de desfazer em duas horas naqueles que o prestigiam, o péssimo costume de se receber da indústria tudo mastigado. Um processo que afeta intelectualmente não somente os receptores, como também as mentes criativas por trás dos projetos, que acabam se escravizando e limitando tremendamente suas potencialidades.
Somos apresentados então ao protagonista Alex Oscar, nome verdadeiro do diretor e anagrama de seu nome artístico, uma incógnita em constante mutação, um ator. Sendo transportado pela vida em um luxuoso camarim sobre quatro rodas, ele atravessa um longo dia de trabalho, cumprindo vários compromissos. Cada evento simboliza um gênero cinematográfico, flertando inclusive com as ferramentas que compõem esta arte, como a computação gráfica, simbolizada pela utilização da captação de movimentos e a ilusão que cria. Vamos percebendo aos poucos que este homem não possui uma identidade.
Como Sísifo, está fadado a nunca alcançar o cume de sua existência, seu lar, evidenciado pela escolha musical que toca na rádio: “… voltar para casa”. Entre um personagem e outro, assiste a vida, o caminho à frente na estrada percorrida pela limousine, por uma tela de televisão, demonstrando desesperança com a humanidade, algo que se tornará evidente em um diálogo posterior. Em dado momento, após representar um idoso moribundo, despede-se de sua parceira de cena, agradecendo-a pela troca perfeita que ocorre quando dois artistas se entregam de corpo e alma, investindo toda sua emoção e técnica, visando entreter desconhecidos. Uma cena pequena e com poucas falas, mas que considero uma das mais belas homenagens às artes cênicas, captando com perfeição a essência desta vocação.
Abraçando o terror, revive o personagem “Merde” (de “Tokyo!”, de 2008) na primeira sequência genial e que requer um pouco de atenção. A trilha apresenta o tema do monstro Godzilla, enquanto o ser bizarro de olho vazado e unhas pútridas atravessa um cemitério onde se pode ler nas lápides, ao invés de nomes: “visite meu website”, em diversas línguas, seguido por domínios espirituosos como: tobeornottobe.com (“ser ou não ser”, o clássico existencialismo de Hamlet).
Eva Mendes vive uma modelo que posa para um fotógrafo entre as lápides. O homem repete vidrado: “beleza”. Quando percebe “Merde”, esquece a modelo e começa a tirar fotos dele, ambicionando uni-los como “bela e fera”. Agindo como Quasimodo, “Merde” carrega sua Esmeralda nas costas, adentrando o esgoto e comportando-se como Erik, o “Fantasma da Ópera” de Gaston Leroux, com sua Christine. Escondendo a beleza dela com tecido, despe-se, e recosta sua cabeça em seu colo, jogando pétalas de rosas em seu próprio corpo. A imagem nos remete claramente à Pietá de Michelangelo.
Mais adiante (logo após uma cena em que ele supostamente tem sua identidade trocada com a de um homem que foi eliminar – vale salientar que todos aqueles que representam conflitos físicos são interpretados pelo próprio Denis Lavant, como que simbolizando a gradativa aniquilação do “superego” e a supremacia do “id”) ocorre o mais importante diálogo da obra, aquele que expressa de forma clara sua crítica à indústria, entre o ator e um enigmático homem que se materializa no automóvel.
O homem afirma que todos estão reclamando do evidente cansaço do ator: “Alguns não estão mais acreditando no que estão vendo”. Ele então responde: “Sinto falta das câmeras. Elas eram mais pesadas que nós, depois elas ficaram menores que nossas cabeças, mas hoje nem dá para vê-las mais. Eu também acho difícil acreditar em tudo isto”. O homem complementa afirmando que bandidos não precisam perceber as câmeras de segurança, para acreditarem que elas estão lá para flagrá-los no ato criminoso.
O homem confronta em seu argumento a crença do diretor, representado pelo ator, nostalgicamente preso em uma realidade que não existe mais, questionando-o sobre a razão que o faz persistir no trabalho, mesmo desmotivado com este admirável mundo novo. O ator responde: “Aquilo que me instigou a iniciar nele, a beleza inerente à atuação”.
Beleza esta que é subjetiva e necessita de pessoas interessadas, capazes, em percebê-la, valorizá-la. Sem um público qualitativo, criterioso, o soar da salva de palmas representará apenas a consequência sonora e mecânica do choque entre duas mãos.