Sempre é muito difícil para um cinéfilo apontar uma única cena que ele considere a melhor dentre todas as suas favoritas. Escolho iniciar este especial com aquela que sempre utilizo como o exemplo máximo desta arte sendo utilizada em toda a sua grandeza, explorando todas as suas potencialidades.
Dez minutos de pura genialidade criativa, conduzida por Stanley Kubrick em “2001 – Uma Odisseia no Espaço” (2001: A Space Odyssey – 1968). Muitos a consideram importante pela beleza ou pelo tão comentado match cut, sem perceber o quanto ela é meticulosamente engendrada.
A cena inicia com os primatas terrenos, cujo ancestral nós compartilhamos, se aproximando do monólito com medo, tentando tocar em sua superfície, com um misto de admiração e pavor.
Nunca haviam visto nada parecido com aquilo. Após algumas horas, já se acostumam com sua presença e continuam seus primitivos afazeres rotineiros. Mas a partir daquele primeiro encontro, algo mudou para sempre naqueles seres, pois eles haviam sentido pela primeira vez a curiosidade.
Numa interpretação possível, alguma forma de mensagem subliminar consegue ser passada pelo monólito, diretamente no cérebro em formação dos primatas. Estes desenvolveriam lentamente novas habilidades, movidos pelo crescente (e inexplicável para eles) interesse curioso, chave para qualquer evolução.
Um primata percebe então que pode fazer uso dos ossos de feras abatidas como instrumento de ataque e defesa. Conseguiriam impor-se perante os que os hostilizassem, assim como abater outras feras para proverem alimento aos seus companheiros.
No exato momento da descoberta, começa a tocar “Also Sprach Zarathustra“, uma composição de Richard Strauss, inspirada pelo trabalho homônimo de Nietzsche, que filosoficamente tratava sobre a evolução humana, sobre como nós somos uma etapa entre o primata e o “übermensch” (além do homem).
A música não está ali por acaso, assim como quando ela é repetida ao desfecho da obra, representando a próxima etapa de evolução do homem para a criança das estrelas.
Enquanto a música toca, somos apresentados a uma montagem com inserções de pequenas cenas de animais tombando (consequência da utilização daquela nova ferramenta pelos primatas), conduzindo para uma breve sequência que mostra a ausência do monólito, evidenciando que seu trabalho já havia sido feito.
No momento seguinte, os primatas utilizam o osso com total consciência de seu poder destrutivo, como algo que lhes concede superioridade perante aqueles que os oprimem, culminando então na cena que reúne todos os elementos filosóficos já abordados em um único match cut (transição).
O osso (ferramenta de destruição, imposição pelo medo) é jogado para o ar numa atitude claramente vitoriosa e descende “transformado” em uma plataforma nuclear orbitante (ainda que Kubrick não quisesse deixar isto claro à época, Arthur C. Clarke, o criador da história, confirmaria isto nos anos posteriores), que nada mais é que a ferramenta encontrada pelo homem moderno para impor-se pelo medo.
O corte não é somente plasticamente bonito, mas também tematicamente funcional. E qual a música escolhida para emoldurar a “valsa” dos satélites em órbita (sistema de defesa terrestre)? “The Blue Danube“, de Johann Strauss II, que deu nome à primeira arma nuclear britânica. O seu uso no filme, neste específico momento, não é coincidência.
2001 é o mais belo casamento de imagens e música em toda a história do cinema.
Um verdadeiro delírio para os sentidos e o pensamento !
2001 está entre os meus preferidos (a lista é grandinha) e minha cena preferida, talvez influenciada pela música, começa com a nave passando lentamente num espaço escuro e muda para um dos astronautas fazendo ‘cooper’ naquele corredor redondo, imenso, ao som de Gayane: Adagio de Aram Khachaturian. A cena termina com os “olhos” do HAL.