Sem Teto, Nem Lei (Sans Toit Ni Loi – 1985)
O crítico e diretor francês Alexandre Astruc acredita que a câmera deve funcionar nas mãos de um diretor tal qual uma caneta nas mãos de um escritor. A diretora Agnès Varda abraça em seu trabalho esta crença.
Nesta obra, que considero uma das melhores de sua carreira, ela rejeita qualquer coesão ou estrutura de continuidade, abordando a exclusão social pelas lembranças daqueles que testemunharam (em menor ou maior investimento emocional) a passagem da jovem Mona Bergeron (Sandrine Bonnaire), uma incógnita fascinante.
Escolhendo apresentar a personagem nos primeiros minutos, como um corpo congelado numa vala e sem vida, enquanto a narradora (Varda) questiona: “Fico imaginando se ela ainda vive na lembrança daqueles que a conheceram quando criança. Aqueles que ela encontrou recentemente recordam-se dela, pois ela os marcou”. Para nós, assim como para a narradora, aquela jovem foi trazida pelas ondas do oceano misterioso chamado: passado.
Varda escolhe então mostrá-la saindo do mar, como uma nova Eva em um paraíso de incertezas. Não existe promessa de descobertas a respeito das razões que a levaram ao abandono de seu conforto pelas aventuras nas estradas, mas ficamos hipnotizados imaginando as várias possibilidades.
As pessoas se sentem atraídas por ela, não por simpatia (ela beira a apatia, com exceção de uma cena em que procura acarinhar uma criança), mas por enxergar em suas espontâneas atitudes uma “cura” para suas limitações autoimpostas, por medo ou covardia.
Uma menina afirma querer ser livre como ela, enquanto uma senhora idosa extravasa com ela a consciência de que seus familiares torcem para que ela desapareça, para que possam seguir suas vidas. As gargalhadas de ambas, incentivadas pelo álcool, revelam-se um golpe de cruéis verdades desferido no estômago de uma sociedade hipócrita.
Em dado momento, uma das jovens que atravessaram o caminho de Mona, romantiza a relação dela com um rapaz, como sendo sua visão idealizada de amor verdadeiro. Pouco tempo depois, Varda contradiz o discurso, mostrando o rapaz afirmando que seu amor pela garota era motivado pela quantidade de psicotrópicos que ambos ingeriam juntos.
O público é então presenteado com duas versões, ainda distantes daquela realidade intocável. Mona parece ser uma força da natureza, um elemento que se recusa a ser subjugado pela alienação generalizada.