Neste especial “Woody Allen”, começo sempre com um texto cômico, no estilo do homenageado, um dos meus ídolos nesta arte.
Esta noite tive um sonho dos mais esquisitos e quero compartilhá-lo com meus queridos leitores. Um homem vestido de mestre-sala de escola de samba pulava amarelinha no meio da rua, enquanto o sinal de trânsito estava vermelho. Ao primeiro sinal das buzinas dos impacientes motoristas, ele se desculpava com extrema mesura e caminhava ao encontro de uma anã vestida de freira, que o abraçava feliz, como se não o visse há meses.
Na quarta vez que o mesmo ritual ocorreu, o homem veio em minha direção antes de retornar para o centro da rua. Com uma expressão de incrível seriedade, ele me perguntou se eu não estava nem um pouco abalado com aquela cena. Eu respondi que nunca tinha visto nada parecido com aquilo, que parecia um sonho bizarro e sem nenhum sentido. Ele sorriu, pousou as mãos em meus ombros e, olhando fundo em meus olhos, disse: “O melhor que pode fazer é ficar olhando?”
Então, como se fossem canais sendo trocados rapidamente pelo controle remoto da televisão, várias imagens tomaram forma. Eu consegui reter relances, como três freiras anãs, inclusive, aquela que abraçava o mestre-sala, saltando a La Quebrada de Acapulco, e uma mulher chorando a morte de alguém em um programa de TV, mas abrindo um sorriso segundos depois, enquanto vendia uma máquina de waffle.
Estava agora em outro ambiente, um tipo de realidade alternativa, onde artistas bons e talentosos não tinham espaço na mídia, mas onde personagens grosseiramente burlescos dançavam seminus, e criminosos compravam os horários nobres da programação televisiva. Eu via debates sobre mauricinhos estúpidos que haviam saído de uma mansão, onde sofriam confinados, dançando no ar-condicionado. No momento em que começaram a tocar as músicas mais populares, percebi que nelas os cantores citavam seus próprios nomes como parte das letras, que, de tão simplórias, não requisitavam sequer o curso primário de seus fãs. Não suportei mais e abri os olhos. Ainda bem que era só um pesadelo.
Após uma noite conturbada dessas, não havia nada melhor para me acalmar, que me focar em meus treinos com o clarinete. Estou praticando diariamente há uns oito meses e já consigo assoprar e trocar os dedos nos orifícios ao mesmo tempo. Quem sabe meus netos ainda me escutem tocando “Parabéns para Você”. É mais provável que eu desista nos próximos meses e acabe optando por algo mais desafiador, como um oboé, ou, quiçá, uma flauta-doce. Quem sabe eu deva desistir de minha carreira no jazz e aceitar o triste fato de que não possuo nenhuma coordenação motora, partindo para a carreira mais rentável do país: pastor evangélico neopentecostal. Foi exatamente o que tentei nessa tarde.
Não existe nada melhor, pois você pode fazer o que quiser, dizer o que quiser, não importa quem esteja ofendendo, ganhar espaço na televisão e, se completar a meta mensal, ganha uma excelente comissão. Comecei a pregar nas ruas, para checar meu poder de persuasão e saber se valeria a pena o investimento. Não é difícil, basta não ter vergonha na cara, elevar a voz e torná-la levemente cantada, lendo trechos aleatórios da Bíblia, fora de contexto, e sempre enfatizando a necessidade da oferta. Não demorou nem dez minutos para um jovem me abordar. Ele disse que estava decepcionado com todas as crenças.
O que mais o havia desanimado era uma recente experiência com uma regressão. O jovem acreditava firmemente que havia sido um valoroso centurião romano em vidas passadas, mas descobriu que sua participação mais digna de menção havia sido na sua encarnação anterior, como figurante na novela “Selva de Pedra”. Consegui com inelutável lábia, fazê-lo acreditar que um salmo, escolhido a esmo, de um dos apóstolos, cabia perfeitamente naquele seu problema, pouco antes de perguntar se ele iria fazer sua oferta em dinheiro ou cartão.
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Voltando para casa, tarde da noite, após meu dia de serviço como cover de pastor evangélico neopentecostal, passei por uma rua que me chamou a atenção. Sentada na beira da calçada, uma freira anã contava suas moedas, enquanto, à sua frente, um homem vestido de mestre-sala de escola de samba, gesticulava pedindo paciência aos carros que buzinavam. Ele iniciou seus pulinhos seguindo riscos imaginários no asfalto, enquanto eu, envergonhado, corria pela sombra e buscava chegar logo em casa. Já pensou se eles me vissem e imaginassem o que eu tinha feito naquela tarde? Tudo, menos isso!
VOCÊ PRECISA TER UM POUCO DE FÉ NAS PESSOAS, CARO ESCRIBA. UM HOMEM CARISMÁTICO PODIA INFLUENCIAR UMA NAÇÃO A FAZER COISAS HORRÍVEIS NO PASSADO, MAS VIVEMOS HOJE NA ERA DA INFORMAÇÃO GLOBALIZADA. A PESSOA PRECISA SER MUITO ESTÚPIDA PARA CAIR EM CONTOS DO VIGÁRIO… – ASS: SALES, O INGÊNUO, PRIMO POBRE DE SILAS, O ESPERTO
Manhattan (1979)
Um escritor de meia-idade divorciado (Woody Allen) se sente em uma situação constrangedora onde sua ex-mulher o largou para ficar com outra mulher e, além disso, está para publicar um livro, no qual revela assuntos muito particulares do relacionamento deles. Neste período ele está apaixonado por uma jovem de 17 anos (Mariel Hemingway), que corresponde a este amor. No entanto, ele sente-se atraído por uma pessoa mais madura, a amante do seu melhor amigo, que é casado.
O melhor trabalho de Woody como ator. Esta obra representa o fechamento do primeiro ciclo na carreira de Allen, após alcançar o molde perfeito com “Annie Hall” e se arriscar em seu primeiro drama, com “Interiores”. “Manhattan” é a junção perfeita de drama, romance e comédia, sendo o pioneiro no que muitos chamam de “Fórmula Woody”. Desde o início, ao som de “Rhapsody in Blue”, de Gershwin, emoldurando imagens da cidade, até o excelente diálogo final entre Woody e Mariel, onde ele descobre ser menos maduro que ela, encontramos um escritor confiante e em seu auge criativo.
A fotografia em preto e branco de Gordon Willis, que afirmou ter sido este o seu melhor filme, concede ainda mais elegância ao projeto, incluindo a icônica cena da conversa junto à ponte Queensboro e o uso das sombras na conversa no planetário. A forma como Mariel se porta, sua naturalidade ao confrontar-se com Diane Keaton, quando ela pergunta sobre a ocupação da jovem, que responde: “vou à escola”, e sua latente admiração pelo homem mais velho e de gosto refinado, fazem com que um tema complicado, a diferença de idade no casal, soe extremamente natural.
O texto é ótimo, coescrito por Marshall Brickman, repetindo a parceria de “O Dorminhoco” e “Annie Hall”, mas quem rouba o show é Mariel (e quando Meryl Streep está no mesmo elenco, isso é dizer muito).