Não irei dissertar com palavras difíceis, complicando a comunicação com o leitor, afastando-o em sua humildade perante algo que erroneamente considera superior ou atraindo-o em seu desejo por autoafirmação. Eu serei simples e direto sobre “Terra em Transe” (1967), de Glauber Rocha.
Como leitor, eu sempre me frustrei ao ler textos sobre Glauber e seus filmes, pois nunca encontrei neles algo essencial: paixão. Encontrava muita empáfia, parágrafos imensos que pareciam dizer pouco, poucas linhas que realmente simbolizassem muito.
Glauber afirmava que seu filme não era uma mensagem cifrada sua para qualquer interesse partidário, mas sim, uma crítica ao modo de se fazer política em qualquer lugar do mundo. Mas o que eu encontrava nos textos eram visões pessoais, como que puxando o filme para a visão política de quem o escreve, seja de direita, esquerda, de ladinho, atacante ou reserva, expressões que iludem aqueles ingênuos que ainda hoje assistem a um mundo dividido em bons e maus, mocinhos e bandidos. “Terra em Transe” é intrinsecamente apolítico. Uma bela poesia que grita liberdade, que acusa em um estilo próprio (não plenamente eficiente, pois se arrisca bastante) a fragilidade do ser humano.
Eu procurava opiniões emocionais com que pudesse me identificar e encontrava apenas discursos políticos, tão chatos quanto aqueles que poluem nossas televisões em época de eleição. Durante anos e guardadas as devidas proporções, tentaram fazer com Glauber o mesmo que a igreja católica fez com Jesus: mitificá-lo, subvertendo seus ideais em joguetes convenientes aos interesses dos que lucram. Ele era um questionador incessante, verborrágico e batalhador.
Quando seu filme não pôde ser liberado para Cannes, pois necessitava de um telegrama de alguém do Itamaraty oficializando-o, o jovem não pensou duas vezes antes de falsificar um documento (assinando com outro nome) e conseguir a liberação. Inconsequente e apaixonado por sua arte, falível e ousado, nem sempre conseguia transmitir sua mensagem de forma eficiente, faltava-lhe um pouco de senso de humor e sobrava-lhe espírito contestador.
Acima de tudo, faltava a ele entender que nem sempre o berro atrai mais atenção. Pode fazer uma rua inteira voltar suas cabeças para descobrir de onde vem o som, mas logo depois as pessoas se dispersam e continuam seus afazeres, ao final do dia esquecem-se. Muitas vezes o sussurro é mais eficiente, martelando na consciência daquele que o escuta por dias, meses.
Os seus filmes berram até mesmo quando em silêncio. Incomodam tanto que, aliados aos textos politizados que suscitou ao longo dos anos, acabaram afastando potenciais futuros fãs. Glauber dizia que procurava fazer algo que mesclasse o cinema intelectual que era feito na Europa (ascensão da Nouvelle Vague), com o cinema de espetáculo norte-americano. Misturar John Ford e Eisenstein. Com “Terra em Transe” ele conseguiu elaborar sua obra-prima, chegando mais próximo e de forma mais eficiente aos seus anseios artísticos.
O poeta intelectual Paulo (Jardel Filho) mostra-se como grande parte da sociedade, desesperado para encontrar um porto seguro nas promessas de algum líder, alguma voz ativa. A sua grande estatura e compleição rochosa escondem uma alma frágil e amedrontada. Ele abraça o recluso conservadorismo de Diaz (magnífico Paulo Autran), que lhe foi útil durante um tempo em sua escalada social, porém cujo verniz foi descascando até exibir sem pudores uma megalomania doente, com um complexo de César que o faz trair quem seja preciso.
Fascinado por uma militante (Glauce Rocha), acaba sendo atraído para uma voz menos arrogante, porém ainda mais hipócrita: Vieira (incrível José Lewgoy), um reformador populista que beija os pés do clero e promete representar a verdadeira voz do povo no poder. Um povo miserável, analfabeto e que não pensa duas vezes antes de aplaudir o agressor com as mesmas mãos que ainda recuperam-se das feridas do recente açoite sofrido.
Paulo logo percebe que Diaz e Vieira estão interessados apenas no poder, nos privilégios. O mundo mudou pouco, continuamos hoje em Eldorado. Tanto o engomado quanto aquele cujo assessor de imagem aconselha que desarrume a gravata (para parecer mais informal), buscam apenas o lucro pessoal e os benefícios que a posição lhes concede. “Vota no meu parente que ele é bom, realmente quer modificar a cidade para melhor”. Balela, pura tolice. Ele será bom para você que é parente dele, para o resto da cidade ele será apenas mais um peão em um jogo cuja regra não nos é passada (e nem a ele).
Quem quer modificar uma cidade, começa com o vizinho. Modifica sem precisar de votos. Não existe forma de se fazer crescer rosas em uma terra ruim, precisa-se trocar a terra. Paulo demorou muito para perceber esta triste realidade. A poesia morre quando enfrenta a política.
O único ato político incorruptível é aquele que não necessita de eleições e também não é remunerado: inspirar os bons valores e a integridade de caráter. O resto é lixo, papéis e cartazes que sujam nossas ruas, carros de som e seus insuportáveis jingles que não respeitam a lei do silêncio. A Terra continua em transe…