Lavoura Arcaica (2001)
Eu assisti ao filme na época de sua estreia, muito antes de pensar que um dia escreveria profissionalmente sobre cinema, absorvendo a experiência sem olhar clínico. Eu fiquei fascinado, desconcertado com a explosão sensorial que ele provocava. Corri para ler o livro original de Raduan Nassar, que viria a se tornar um de meus favoritos.
Vários textos criticavam, com excesso de palavras difíceis, apontando como um demérito suas pretensões artísticas. Engraçado que os escritores desses artigos enxergavam negativamente a pretensão na obra, mas ignoravam o fato de que poderiam ser julgados da mesma forma pela desnecessária prolixidade técnica em seus próprios textos.
Poucos foram os artigos que celebravam sem discursos vaidosos, tentando diminuir a qualidade do produto ao limitá-lo a alguma espécie de padrão cinematográfico nacional, insinuando que o nível de experimentações estéticas e narrativas comandadas pelo diretor Luiz Fernando Carvalho estariam isolando-o de uma parcela do público, adentrando no estereótipo do “filme de arte”.
E o sucesso de bilheteria era visto como algo negativo, já que poderia firmar um padrão inconsciente, aos olhos de público e crítica, do que seria considerado um cinema valoroso. Era uma “no-win situation”, já que tanto o sucesso quanto o fracasso, teoricamente, pesariam contra o projeto aos olhos de quem o criticava.
A verdade, no meu ponto de vista de outrora e que ainda se mantém, é que a obra estabeleceu um padrão de qualidade bastante alto, que poucos cineastas brasileiros sentiam-se capazes de igualar ou superar, independente da verba que tivessem à mão, uma questão de criatividade, sensibilidade e talento. E essa constatação mexeu com os brios de muita gente.
Algo similar ocorreu com o diretor Anselmo Duarte, quando chegou ao Brasil com sua Palma de Ouro por “O Pagador de Promessas”. A solução dos medíocres é sempre tentar diminuir os esforços alheios, nunca buscar o necessário aprimoramento pessoal.
Quase quinze anos depois, basta analisarmos o panorama de nosso cinema comercial, para vermos que os medíocres estão dominando as grandes salas com comédias tolas e com prazo de validade curtíssimo, enquanto os ótimos diretores autorais, quase sempre com pouca verba, arrancam sinceros e criteriosos aplausos em festivais. Filmes como “Lavoura Arcaica”, infelizmente para nossa indústria, continuam sendo eventos raros no Brasil.
A fidelidade ideológica às páginas de Nassar pode ser percebida inicialmente na preocupação do diretor por uma construção detalhista, da utilização do texto original, passando pelas ideias inteligentes no vestuário de Beth Filipecki, até a elegância funcional de nosso Gordon Willis: Walter Carvalho, com belíssimo uso do contraste sombras/luz, estabelecendo imageticamente desde o princípio a metáfora com a vida “fora de foco” do protagonista André (vivido por Selton Mello, ponto fraco do projeto, sem nunca acertar o tom), entorpecido pela paixão proibida que sente por sua irmã (Simone Spoladore, equilibrando perfeitamente em seu silêncio a reprimida sensualidade e o medo).
O jovem nos conduz pelo labirinto de sua memória emocional, instigado a despertar de seu coma existencial pela visita inesperada de seu irmão mais velho, que está empenhado em levá-lo de volta ao seio da família.
Filipecki sutilmente evidencia no figurino a maturidade gradual de André, já que usualmente utilizava roupas claras (diferente da gravidade em tons escuros do pai e dos irmãos), preso ao amor pela irmã e pela ligação quase erótica com sua mãe. Ele somente passa a se vestir com tons escuros quando retorna para casa, acompanhado pelo irmão, não sendo mais psicologicamente imaturo.
O discurso do pai (espetacular Raul Cortez), que celebra a paciência como a maior virtude do homem, entra em conflito direto com o espírito livre e curioso do filho, que prefere correr o risco de se perder na longa estrada do autodescobrimento, do que viver com medo de pisar fora do conforto de seu lar.
Ao afirmar querer ser o profeta de sua própria história, ele mostra o desejo de cortar qualquer amarra com as leis de conduta da sociedade, confrontando figuras de autoridade e negando qualquer forma de repressão, elementos presentes no contexto ditatorial militar que a nação vivia na época em que o livro foi lançado.
O orgasmo que sucede o ato mecânico na cena inicial, analogamente emoldurado pelo som de um trem em movimento, simboliza a liberdade adquirida pelo jovem naquele quarto essencialmente embrionário, onde a solidão é parte importante do aprendizado.
O Tempo é mágico, e revela segredos da Arte!