Dívida de Honra (The Homesman – 2014)
Em 1854, três mulheres insanas são confiadas à guarda de Mary Bee Cuddy, uma pioneira forte e independente. A caminho de Iowa, nos EUA, onde mulheres podem encontrar refúgio, Mary conhece Georges Briggs, um criminoso que tem sua vida salva por ela. Em agradecimento, ele decide seguir viagem ao seu lado e a ajuda na jornada.
É um aspecto comum do cinema, quando tenta criar uma personagem feminina forte, adicionar em sua composição vários elementos compartilhados pelos heróis, invariavelmente masculinizando a mulher, tornando-a bruta e insensível, ao invés de evidenciar a bravura inerente à sua feminilidade. Como a Ellen Ripley, de “Aliens – O Resgate”, ou, num exemplo recente do gênero, a menina da refilmagem de “Bravura Indômita”, ainda que exista uma função desta atitude em sua origem literária, já que ela adota psicologicamente a personalidade do pai que busca vingar.
Já a Mary Bee, vivida por Hilary Swank, é o extremo oposto, um inteligente modelo de construção de personagem. Ela é uma mulher madura que sobrevive sozinha no Velho Oeste, enfrentando o preconceito da sociedade machista, rejeitando a subserviência ao provar competência em seu trabalho, porém, como uma alma sensível, capaz de aliviar as angústias diárias tocando imaginariamente as teclas de um piano bordadas em tecido, ela deseja ser verdadeiramente amada.
O cenário rude, desolado, reflete metaforicamente a negação da sensibilidade, um berço de homens estúpidos que cospem suas mulheres de suas vidas, ao primeiro sinal de problema, figuras vistas como minimamente humanas, dispensáveis. Ao se dispor à difícil tarefa de conduzir três mulheres que perderam a sanidade, por conseguinte, impiedosamente despejadas por seus maridos, até uma cidade onde irão receber tratamento, Mary ousa vestir o manto de sacrifício por uma causa cujo escopo não poderia sequer compreender.
A alegoria é potencializada pela brutalidade que Tommy Lee Jones, enquanto diretor, não se intimida de mostrar. Cenas muito fortes, como uma protagonizada por Miranda Otto e um bebê, logo no início, exibem a coragem de um roteiro que não intenciona suavizar o impacto de sua mensagem, infelizmente ainda vergonhosamente atual.
A revoltante repetição do ato do abuso com uma das mulheres doentes, incapaz de reagir, enquanto outra, que testemunha a violência, conscientemente silencia, assim como a automutilação, filmada com chocante frieza, ou as tentativas humilhantes da protagonista que tenta se adaptar às pressões comportamentais e encontrar um marido, estão dentro do contexto da época, porém falam diretamente ao papel da mulher hoje.
O personagem de Jones aparece exatamente na cena seguinte à reza do sacerdote, que pede proteção a Mary em sua árdua jornada, uma resposta certa encaminhada por linhas tortas de caráter, o símbolo máximo, quase caricato, do machismo, alguém que despreza o feminino a ponto de inicialmente rejeitar a hipótese de consumar uma noite de amor com Mary, desprezando-a até como imediatista objeto romântico. Ele não odeia a mulher, apenas sente profunda indiferença.
Na cena, ele se despe com desleixo e preguiça, salientando seu total desinteresse em repensar sua conduta. Ela, por outro lado, havia demonstrado na cena em que consegue estabelecer conexão emocional com uma das vítimas, após gentilmente abraçar a ilusão que a mantém viva, a disposição libertária para a mudança de pensamento. Ela, a mulher na sociedade, está aberta à discussão, mais preparada que qualquer homem. Ele, o machista impotente, segue surdo aos pedidos de respeito e igualdade.
O faroeste é utilizado então como veículo estético para uma trama que nos conduz à gradual percepção deste homem, o Adão desencantado, que aprende a conviver com o feminino.
Evitando revelar muito da trama, vale ressaltar a beleza metafórica da linda cena no rio, que representa o gatilho desta mudança, um dos momentos mais singelos e bonitos que vi nos últimos anos. Grande parte do mérito se deve também à impecável trilha sonora de Marco Beltrami.
“Dívida de Honra” é, desde já, um dos melhores filmes do ano.
Tornei-me fã de faroeste, desde o tempo em que meu avô, no interior de Minas, apresentava, nas matines de domingo, os seriados de Roy Rogers, Butch Cassidy, Zorro e outros já perdidos na memória. Ainda hoje, esse estilo de filme me fascina, com os cenários inospidos, as mulheres fortes e os cowboys rudes. Não raro, nas madrugadas de insônia, deixo o tempo passar assistindo, pela décima vez, um clássico do faroeste. Amei que Octávio Caruso tenha escolhido esse filme para sua crítica sensível e, ao mesmo tempo, racional. Perfeita, enfim. Como o título merece.