Em mais uma entrevista exclusiva para o “Devo Tudo ao Cinema”, um verdadeiro presente para os cinéfilos dedicados, dona Alice Gonzaga, filha do visionário criador do primeiro estúdio de cinema brasileiro, a “Cinédia”, aborda a situação cultural do Brasil de hoje, as dificuldades de se manter um legado em uma nação que não valoriza sua memória.
O – O seu nome, Alice, não virou sinônimo apenas da Cinédia, como guardiã desse legado, mas, também, sinônimo de resistência cultural em uma nação onde o sistema parece querer, gradativamente, desestimular na juventude o apreço pelo passado. Sem o respeito pelo passado, é impossível compreendermos o presente, além de facilitar tremendamente a manipulação no futuro. Como exemplo, eu cresci assistindo aos clássicos do cinema em exibições na televisão, horário nobre e horário da tarde. Hoje isso é quase uma utopia. Como você enxerga essa espécie de indústria nacional do desinteresse?
A – Não sei se sou sinônimo de resistência, mas luto pela memória do cinema, do cinema brasileiro e da cultura brasileira. Rejeitar a memória é rejeitar a experiência e a possibilidade de descobrir algo que não está lá no passado, mas aqui ao lado. Tudo que sobrevive ao passado está sempre em nosso presente. É um tiro na cabeça desperdiçar conhecimento, afeto, sentimento, emoção, lazer e tudo o mais que a cultura pode proporcionar, além de ser um ativo que o país não deveria jogar fora.
Vivo agora um momento kafkiano na trajetória da Cinédia. Existimos como empresa, temos 85 anos de existência, filmes que são considerados clássicos, e, agora, quando surge um mercado promissor com a TV a cabo, os filmes anteriores a 2008 não preenchem cota de lei, apenas “meia cota”, que leva ao desinteresse comercial, cultural, histórico. É um absurdo! Na era da internet, quando a lógica é a disseminação do conhecimento, é a disponibilização das obras, a televisão brasileira, que já foi assim no passado, chega ao absurdo de colocar tudo on demand e negar à quase totalidade dos brasileiros o acesso ao que esses mesmos brasileiros financiam com o suor do seu rosto. É uma baita contradição e uma injustiça.
O – Como era o Adhemar Gonzaga, pai? Acredito que a música exerce uma importância enorme na vida de mentes criativas. Quais músicas ele gostava de escutar em casa? Quais livros ele apreciava ler?
A – Adhemar Gonzaga era criativo, mas à sua maneira. Ele não ouvia música ou lia regularmente. Toda sua vida foi voltada para o mundo do cinema, desde pequeno. Mas por conta do cinema ele entrou em contato com os espetáculos ao vivo, frequentou os espaços do samba, viveu as plateias e os bastidores do teatro da praça Tiradentes. Das artes, a que ele praticou mesmo foi o desenho e a caricatura, e, obviamente, o cinema, para onde tudo convergia.
O – Lá fora, cineastas como Martin Scorsese, Coppola e Spielberg, verdadeiramente apaixonados, contribuem para manter viva a história da arte, patrocinando restaurações de obras que se perderiam. Acredito que essa é uma das razões que impedem que, no Brasil, amadureça uma indústria de cinema de nível competitivo: os atores e cineastas enxergam o trabalho de forma muito imediatista, pouco valor dão ao passado. Os poucos que tentaram nutrir uma indústria autossustentável, como seu pai e Mazzaropi, foram massacrados pela crítica, desestimulados de todas as formas possíveis. O governo tem sua parcela de culpa, claro, porém, não falta aos realizadores de cinema brasileiros o mesmo tipo de empenho pela própria classe?
A – Olha, fazer cinema no Brasil sempre foi muito difícil e isso criou uma cultura imediatista, que teve seu lado bom – brigar pela existência de um cinema brasileiro – e ruim – verdadeiramente não se olha para o passado. O ponto central dessa questão é que não formamos uma tradição e isso está diretamente ligado ao reconhecimento de um passado, de uma história, de uma cultura cinematográfica própria. Meu pai, Adhemar Gonzaga, tinha consciência disso e insistiu em preservar documentos, filmes, tudo. Só assim poderia criar um sentimento de classe, um projeto de cinema que soubesse de onde vinha, para onde iria. Fazer por fazer, todo mundo pode fazer, mas, fazer consciente, dando uma contribuição efetiva, já é outra coisa.
O – Como a senhora enxerga a valorização atual das chanchadas pela crítica, quando, durante muito tempo, elas eram injustamente tratadas como um produto menor? A qualidade de produção era impecável, os figurinos e os cenários, grandiosos. Os musicais da MGM, da década de 50, muitos deles eram bregas, inferiores aos musicais que nós fazíamos, porém, ninguém reclamava. Essa reação era uma variação do complexo de vira-latas?
A – Essa questão é muito complexa. Vem da própria formação do Brasil, que teria um povo de segunda classe, inferior, sem capacidade de criação sofisticada. Por outro lado, sabemos que o colonialismo não é apenas uma questão de “complexo de vira-lata”. O colonizador cria uma situação mental, como argumentava Fanon, e isso atravessou boa parte da crítica cinematográfica brasileira, que partia sempre da premissa de que o filme estrangeiro era melhor por ser “mais” (caro, luxuoso, grandioso etc.).
O equívoco está em desconsiderar o próprio filme brasileiro como fonte do que se quer argumentar, pró ou contra, e sem comparações em um primeiro momento. E quando se comparar deve-se sempre ter em mente que os contextos são sempre diferentes. Há racismo no Brasil e nos Estados Unidos, como há cinema nos dois países, mas o racismo de lá não é da mesma natureza e intensidade do daqui. Compreender, um e outro, é se abrir às especificidades e características locais, sem partir de um ideal ou paradigma.
O – Comente um pouco sobre o profissionalismo das equipes que conduziam a Cinédia. Eram filmes realizados sem qualquer apoio governamental, muito pelo contrário, o governo quase sempre atrapalhava o processo. A paixão era o que movia o empreendimento. O que o cinema nacional de hoje poderia aprender com o cinema que era realizado pela Cinédia?
A – A Cinédia fez a maior parte de seus filmes em outro momento histórico. O cinema realizado pela Cinédia era uma vontade de ser um cinema forte, visto pelo público, um cinema brasileiro com temas brasileiros. O padrão de produção era profissional na medida em que o sistema de estúdio é muito mais regrado e hierarquizado do que hoje, quando se tem grandes equipes, mas muitos parecem apenas estar vagando pelo set, estando ali às vezes apenas para servir o cafezinho.
O que talvez a Cinédia pudesse ensinar aos cineastas e profissionais de hoje é o comprometimento com uma causa, a da arte do cinema, qualquer que seja a sua convicção a esse respeito. Sobre o papel do governo, é preciso lembrar que meu pai já solicitava essa participação, embora a definição do que o governo deve fazer seja sempre uma discussão a ser feita dependendo do contexto.
O – A senhora acredita que deveria haver uma isenção do pagamento da Condecine, para a exibição de filmes clássicos brasileiros restaurados na televisão? Esse tipo de coisa não é mais um empecilho, um elemento desmotivador, que trabalha contra a preservação da memória cultural brasileira?
A – Deveríamos sim criar uma isenção, pois o que a Condecine fez com o filme antigo foi promover a sua desvalorização. Paga-se pouco porque é antigo, e o líquido desse pagamento fica com o estado, que deveria estar trabalhando para difundir o patrimônio acumulado junto à sociedade e não taxando filmes que já pagaram top do tipo de imposto no passado e estão depreciados economicamente, mas não culturalmente.
Caso seja preciso cobrar a Condecine, que o dinheiro acumulado com a Condecine estimule a indústria, preservação e difusão do cinema brasileiro. Por que apoiar apenas filmes novos se cobra de todos? Por que financiar distribuição de filmes e desprezar a distribuição de clássicos e obras antigas? Por que não apostar em todos os tipos de ativos, os novos e os
antigos?
O – Como foi para a senhora abraçar a responsabilidade desse legado, após o falecimento de seu pai? Foi uma atitude muito bonita, mas, tenho certeza, uma decisão tremendamente difícil, ainda mais tendo encarado esse trabalho sozinha, cara e coragem.
A – Sempre estive acompanhando o movimento do estúdio, da empresa, da vida de meu pai. Sempre tive consciência dos filmes da Cinédia. Desse modo, a responsabilidade já existia bem antes da morte de meu pai. Muito antes, talvez, desde minha infância. Na hora h, não sabia bem o que fazer, pois como mulher não tinha formação para assumir um negócio, ainda mais de cinema, mas segui em frente. Para mim tratava-se de preservar tudo, pois pensava no arquivo de documentos, que sempre fora cuidado por mim e por meu pai.
Assim, não foi uma decisão propriamente difícil, em 1971, quando virei diretora. A rigor, não tinha noção do que vinha pela frente. Hoje, com o conhecimento e vivência que adquiri, talvez não aceitasse. A decisão foi repentina. Assumi sem saber o que vinha em seguida. Até hoje me surpreendo com minha coragem e desinibição, pois não fui educada para tal. E nunca me passou pela cabeça assumir. Entrei, gostei, mudei minha vida por completo. E não me arrependo! Fiz um trabalho que considero bonito, sério e importante. E espero continuar. Temos muito ainda a fazer.
O – Em qualquer nação séria, que valorizasse a cultura, a senhora seria considerada um patrimônio nacional, guardiã do legado da Cinédia, amparada de todas as formas, no intuito de seguir realizando seu trabalho, restaurando e preservando as obras, com conforto. Essa, infelizmente, não é a realidade. Como as pessoas podem ajudar efetivamente, com doações para a ONG? Comente isso e, também, como se pode contribuir.
A – Todos devem trabalhar e lutar pelo que acreditam. Uma das lutas atuais do campo da cultura é criar um comportamento novo no empresariado e na sociedade brasileiras, comprometendo-os não só com os tão necessários recursos financeiros, mas com uma atitude de valorização pública das obras artísticas e culturais. Nada de aplicar o dinheiro em sua própria “instituição cultural”, mas apoiar e apostar em quem dedica uma vida a criar e a preservar.
Em vez de comprar um quadro (ou um filme) para sua coleção particular, doar a obra a um museu (ou a uma cinemateca). Isso é consciência pública e não apenas mero negócio. Tenho uma ONG, o Instituto para a Preservação da Memória do Cinema Brasileiro – IPMCB, que cuida não só dos filmes da Cinédia, mas dos de muitos outros produtores e diretores, como os do Moacyr Fenelon. Aceitamos sim, doações e patrocínios, pois não é um trabalho simples ou barato.
O – Sou apaixonado por “Limite”, de Mário Peixoto. É um filme que eu adoraria ter em DVD, na minha estante, lançado por uma distribuidora séria, como a “Versátil”, que já lançou “O Ébrio”, outra pérola. Imagino que seja difícil responder isso, mas, dentre todos os filmes da Cinédia, qual é o seu favorito?
A – “Limite” foi lançado em DVD pela Cinemateca Brasileira. Os meus preferidos são “Bonequinha de Seda”, “O Ébrio”, “Alô! Alô! Carnaval!” e “O Cortiço”. Mas gosto de todos os filmes. Todos estão debaixo de minha asa. Todos tem uma característica que os diferenciam. Todos documentam uma época, costumes, a cidade, a maneira de ser, guarda roupa etc. Mas precisamos nos colocar na época em que foram produzidos e com os recursos disponíveis. A juventude tem que ter uma ideia do que foi produzido e reverenciar os atores e a equipe técnica, pois todos os filmes foram produzidos com muito sacrifício e garra.
O – Dona Alice, eu quero agradecer muito sua generosa participação. Em nome de todos os brasileiros apaixonados pelo cinema, te agradeço pelo empenho incansável por todos esses anos. Por gentileza, deixe uma mensagem final para
meus leitores.
A – Eu é que agradeço a oportunidade de dizer algumas palavras a você e seus leitores. A mensagem que deixo é que cada um de nós cuide do que temos sob nossa guarda. É um passo importante para o Brasil. É assim que se constrói a memória, a despeito da indiferença daqueles que tem a responsabilidade nas mãos e não a exercem. Se eu não entrasse na Cinédia, não corresse atrás, os filmes estariam todos perdidos. As palavras Restauração ou Recuperação não existiam. Garanto que servi de exemplo para alguns…