007 Contra Spectre (Spectre – 2015)
James Bond chega à Cidade do México e está pronto para eliminar Marco Sciarra sem que o chef M saiba da missão. O caso leva à suspensão temporária do agente, que passa a ser constantemente vigiado pelo governo britânico graças a uma tecnologia implantada em seu corpo por Q. Na tentativa de despistar os inimigos e até mesmo alguns de seus parceiros de trabalho, ele se responsabiliza por ajudar a filha de um desafeto. Toda a situação o leva ao centro de uma temida organização denominada Spectre.
Um detalhe que pode passar despercebido, mas que, creio, diz muito sobre esta nova postura do personagem. Na tradicional gunbarrel, desta feita, voltando a dar as boas-vindas ao público, Daniel Craig é visto caminhando de forma segura, sem tentar esconder o revólver no bolso da calça. A gênese já está completa, após três projetos sendo um leão de chácara em processo de lapidação, ele interpreta agora o mesmo personagem eternizado por Connery, porém, psicologicamente mais agressivo. É o reflexo natural de uma sociedade mais cínica.
O filme é o encerramento de uma tentativa arriscada dos produtores da franquia, que, objetivando a renovação do personagem de Ian Fleming, inserindo ele em um molde de obras de ação/espionagem moderno, extirparam dele todas as suas características principais, um reboot agressivo que havia sido orquestrado, de forma bem menos corajosa, na breve era de Timothy Dalton. Como era óbvio desde “Cassino Royale”, o James Bond de Daniel Craig representa, pela primeira vez, a gênese do herói, fórmula corriqueira no cinema atual, um prequel elegante.
Em “Operação Skyfall”, o diretor Sam Mendes conseguiu elaborar algo que mantinha o espírito das produções, porém, injetava um elemento autoral nunca antes experimentado na série, um maior refinamento técnico. Já em “007 Contra Spectre”, ele entrega um produto para os fãs antigos, com todos os elementos reconhecíveis, referências claras e sutis, além de um desfecho que é uma linda declaração de amor à nostalgia. É possível que, acostumados com as modificações, uma boa parte do público, aqueles que passaram a gostar do personagem com os filmes recentes, encontrem motivos para reclamar da zona de conforto, dos aspectos menos realistas.
007 voltou a ser sinônimo de escapismo, viagens pelo mundo, muitas mulheres seduzidas pelo caminho, cenas de ação improváveis que desafiam as leis da gravidade, capangas truculentos e silenciosos, vilões de revistas em quadrinhos e, acima de tudo, diversão, algo que estava sendo minimizado com um crescente interesse freudiano pela angústia existencial. O clássico início com o cano do revólver está de volta, e, mais importante, o senso de humor retorna em grande estilo, ainda que Craig soe pouco confortável em algumas piadinhas mais escancaradas.
Ele consegue emular perfeitamente o senso de perigo que Connery transbordava, mas, não há como negar, falta a ele, enquanto ator, a capacidade de empatia/carisma que Roger Moore e Pierce Brosnan dominavam com as mãos nas costas. É muito interessante a forma como o roteiro utiliza os coadjuvantes, M, Q e Moneypenny, usualmente meras peças decorativas nos filmes clássicos. Eles estão inseridos, não apenas nas sequências de ação, algo relativamente mais fácil, mas, especialmente, nas engrenagens que mantém a narrativa no curso.
A ideia de resgatar o vilão mais famoso da franquia, Ernst Stavro Blofeld, apesar da tola tentativa de esconder o que o título já deixava óbvio, poderia ter sido mais bem aproveitada. Um personagem tão forte, reduzido a uma nota de rodapé. Como maior ponto negativo, a motivação dele, vivido por Christoph Waltz, no mesmo piloto automático que consagrou seu nome no cinema americano. O propósito dele na trama é simplesmente medíocre, com o roteiro cometendo o equívoco crasso de buscar uma justificativa íntima, familiar, para o antagonismo dos personagens, o tipo de recurso desgastado e simplório que se espera, por exemplo, de uma novela mexicana.
Outro aspecto frustrante é a participação de Monica Bellucci, uma atriz que sempre foi cogitada pelos fãs como a Bond Girl perfeita, acabou sendo relegada a uma inglória ponta. Quer mais um problema? Jaws e Oddjob, só pra citar os mais famosos, eram brutamontes tolos e unidimensionais, mas receberam cenas nos roteiros que os valorizavam
sobremaneira.
Pense em “Goldfinger”, que você irá se lembrar do confronto no Fort Knox. Pense em “Moscou Contra 007”, que você irá se lembrar do confronto no trem com Red Grant. Pense em “Spectre”, que você irá se lembrar de… Bom, com sorte, você vai se lembrar do capanga, vivido por Dave Bautista, que tinha algo como, sei lá, unhas de prata, coisa do gênero, que ele utiliza uma vez apenas, e, surpreendentemente, não em um confronto com o agente secreto. Com exceção da empolgante sequência inicial, uma marca da franquia, que referencia “007 – Somente Para Seus Olhos”, não há qualquer momento de ação verdadeiramente inesquecível. O confronto final do herói com o vilão consegue ser menos interessante que o fraco encontro da versão de Moore com o Stromberg, de “O Espião Que Me Amava”. É mais movimentado, claro, porém, tão irrelevante quanto.
E a música-tema de Sam Smith? “Writing’s on the Wall”, emoldurada pelos competentes créditos de Daniel Kleinman, consegue ser menos sofrível do que imaginei, mas, ainda assim, é um tema pouco inspirado, com uma letra que não condiz com absolutamente nada que simboliza o personagem, em sua versão literária ou cinematográfica. Nem mesmo o 007 mais emotivo de George Lazenby se expressaria de forma tão drama queen. Eu prefiro escutar a Lulu berrando “The Man With The Golden Gun” em looping, do que aguentar este candidato do The Voice massacrando décadas de construção de personagem.
Um ponto interessante dos créditos, a inserção de cenas dos três filmes anteriores (exatamente no momento em que a letra da canção menciona o agente sendo perturbado pelo seu passado), recurso que havia sido utilizado apenas nos créditos de “À Serviço Secreto de Sua Majestade”, com a intenção de reforçar o sentido de unidade para o público, já que Connery havia sido substituído. Os personagens mostrados, os mortos-vivos citados no letreiro pós-gunbarrel, a constatação de que, apesar de todos os esforços do roteiro de “Skyfall”, o espião ainda teria alguns anos de análise pela frente. A opção por manter os resquícios desse dramalhão, além de enfraquecer a essência do personagem
literário, demonstra a insegurança dos produtores em investir totalmente nesta nova abordagem.
Com suas muitas falhas, “007 Contra Spectre” é divertido, uma bem-vinda tentativa de retorno à fórmula da franquia. E, apesar das manchetes equivocadas de alguns veículos mais afeitos às chamadas polêmicas, não é a última missão do personagem. No máximo, pode ser a última participação de Craig, um ator que exerceu bem sua função.