* Resgato aqui a crítica postada na semana de estreia do filme, com a adição de alguns trechos com spoilers.
Interestelar (Interstellar – 2014)
É curioso analisar a reação do público, dividido entre dois extremos, aqueles que celebram o projeto de Christopher Nolan como um sucessor do épico “2001” de Kubrick, tão radicais quanto aqueles que não enxergam qualidade alguma em seu ambicioso esforço. A ambição, por si só, já valeria como mérito, com o diretor provando mais uma vez que é possível unir o cinemão mainstream, com seu calculado entretenimento industrializado, a uma dose generosa de ousadia temática e de execução, tão comuns no cinema independente. O aspecto visual é impressionante, o design do buraco negro, a execução da cena ambientada no hipercubo, um refinamento à altura das questões levantadas no roteiro.
Os primeiros quarenta minutos são intensamente problemáticos, com excesso de diálogos expositivos, defendidos por personagens que agem de forma unidimensional. Alguns, como o vivido por John Lithgow, atravessando a tênue linha da caricatura. Na cena em que o pai, o astronauta fazendeiro interpretado por Matthew McConaughey, avisa sua filha sobre a natureza de sua missão, a trilha sonora de Hans Zimmer se torna insuportavelmente melodramática, tentando extrair a fórceps a catarse de uma relação familiar cujo investimento emocional se resume a longos diálogos técnicos, uma conexão que só existe em teoria, nas páginas do roteiro. Essa cena se estende por mais tempo do que devia, mas como o sentimento proposto agressivamente pela trilha e pelas atuações não soa orgânico, o desespero da menina se torna inverossímil, lágrimas de piloto automático, com o roteiro repetindo os clichês das inúmeras despedidas entre pais e filhos no cinema. Fica clara a ansiedade do diretor em chegar ao ponto que estimulou sua gênese, com o início da missão espacial. Após tanto falatório, fiquei até aliviado quando a câmera se estendeu na paisagem silenciosa do espaço. O segundo ato flui de forma muito mais eficiente.
É interessante a forma como a teoria da relatividade de Einstein é utilizada como recurso dramático, mas quando a trama força um discurso quase piegas, o que ocorre com frequência, inserindo o conceito do amor na equação, fica aparente o desconforto do diretor em se afastar do aspecto mais nerd da obra, as análises científicas e existenciais que ele propõe. Fica parecendo gordura extra, com a quantidade imensa de informações que os personagens metralham, eventuais quebras de ritmo onde, sem exagero, ficamos assistindo tiras de cartolina, sem nenhum aprofundamento ou motivação verossímil, divagando de forma romântica e poética sobre questões que parecem enxertadas somente para agradar o público feminino que aprecia as formulaicas comédias românticas, o que explica os dispensáveis últimos dez minutos. A necessidade de abraçar vários temas bastante distintos, em três longas horas de duração, acaba tornando a abordagem sobre cada um deles algo implacavelmente superficial. Os muitos paradoxos, algo usual em todos os filmes que abordam de alguma forma viagens no tempo, são prejudicados pelos problemas já citados. Quando a trama é bem executada, você investe emocionalmente no que está sendo mostrado, você se afeiçoa organicamente aos personagens, então não se apega em tempo real aos paradoxos. Como o estilo de Nolan prima pelo excesso didático, os paradoxos se destacam na narrativa como um elefante numa loja de cristais. Um exemplo desse didatismo tolo em algo que não é um paradoxo: o personagem de Matt Damon, após mostrar sua real intenção, vira as costas para o protagonista à beira da morte. Na expressão de seu rosto, ele já diz tudo, mas o roteiro insere um texto bobo onde ele verbaliza algo como: “não consigo ver isso, eu pensei que conseguiria, mas não consigo”. Vale comparar a reação dos astronautas desse filme ao encontrarem o buraco negro, momento que vira papo de botequim elegante, com a magistral sequência de “2001”, onde o astronauta atravessa em silêncio o portal das estrelas, evidenciando que a mente humana não está preparada para esse tipo de contato.
Para os admiradores do cineasta, no que me incluo, é ótimo encontrar as características sequências espetaculares com montagens paralelas, assim como é válido aplaudir novamente sua coragem, mas unindo os fracos quarenta minutos iniciais, que emulam as piores características do cinema de Spielberg, e um terceiro ato estruturalmente frustrante, acredito que, por mais impactante que seja o primeiro contato com a trama, com um tema fascinante e algumas reviravoltas espertas, suas falhas tendem a se destacar bastante em revisões. Apesar de seus inegáveis méritos filosóficos, especialmente a partir do ponto em que o protagonista é levado por uma inteligência do futuro a interagir em sua própria linha temporal, aquela maravilhosa ambição narrativa que é tão rara na indústria norte-americana, esse talvez seja o filme do diretor que irá envelhecer com menos graciosidade.
* A ótima novelização de “Interestelar”, escrita por Greg Keyes, a partir do roteiro de Christopher e Jonathan Nolan, está sendo lançada pela editora “Gryphus Geek”.