Eu, Daniel Blake (I, Daniel Blake – 2016)
Ken Loach tem uma filmografia muito coerente, confesso que o estilo dele não me agrada muito, mas “Eu, Daniel Blake”, o mais recente, apresenta o cineasta britânico em sua melhor forma, o protagonista me conquistou já nos primeiros minutos. Um carpinteiro experiente, vivido com brilhantismo pelo comediante Dave Johns, que sofre um ataque cardíaco e fica impedido de trabalhar pelos médicos.
O sistema, no entanto, faz com que ele entregue currículos diariamente na tentativa de conseguir o auxílio financeiro. Ele enfrenta a ausência de empatia dominante no reino dos burocratas, com vários diplomas na parede, porém, ignorantes no básico, incapazes de tratar com humanidade o indivíduo.
Vivemos a era da aparência, da teoria, o que importa é inserir uma melodia tranquilizante no call center, os atendentes agem como máquinas, complicando ao máximo cada etapa do processo na esperança de que a paciência do cliente resista pelo maior tempo possível, longas ligações representam cifrões.
A praticidade, a gentileza, a habilidade de se colocar no lugar do outro, valores que se perdem a cada cidadão que se revolta e decide silenciar, como o vizinho jovem que encontra uma forma fácil de lucrar com tênis importados da China, sem os impostos, tirando proveito da situação.
É a estratégia do “cada um por si”, a malandragem, vendendo escalpos retirados sem esforço de índios explorados e eliminados. Abraçar a causa e lutar por ela dá trabalho. A analogia é válida, já que as engrenagens cruéis operam destruindo aqueles mais necessitados.
Katie, a mãe solteira, vivida impecavelmente por Hayley Squires, passa fome para conseguir alimentar suas crianças. No auge de seu desespero, quando tenta roubar uma loja de conveniência, ela acaba se tornando vítima de funcionários sem caráter, que aliviam seu crime, na esperança de que ela os ajude financeiramente em um esquema de prostituição. Não há altruísmo nesse mundo podre, não há solidariedade, até as vítimas se canibalizam, Loach então propõe que a união é o único caminho.
A atitude rebelde de Daniel, grafitando sua revolta, expressão primitiva, quase selvagem, em resposta à moderna acessibilidade virtual que tanto o perturba, a única vitória possível, tão simbólico quanto o grito por humanidade de John Merrick em “O Homem Elefante”, o testamento em vida de pessoas que, conscientes da derrota, insistem em resistir.
Como o discurso no desfecho evidencia, o protesto é mais importante que o personagem, os alívios cômicos, a impagável cena do aprendizado na utilização do computador, recursos importantes para adocicar a experiência panfletária, a proposta é política.
O relacionamento de amizade formado entre Daniel, Katie e seus filhos, elemento que brota naturalmente a partir de um simples gesto de carinho dele com a jovem, um olhar atento quando todos fingiam não perceber sua presença, proporciona momentos de linda delicadeza e refinado simbolismo, como a estante feita à mão na esperança de que suporte no futuro o peso dos livros acadêmicos da amiga, a salvação pela cultura.