Em noite mexicana, o Oscar manda recado direto para todos os
opressores, daqueles abusadores sexuais que se escondem nas sombras aos grandes
construtores de muros sociais.
A cerimônia do Oscar, com exceção de breves rompantes de
ousadia, entregou o tom familiar de festa chique da empresa, com seu senso de
humor de tio do pavê representado pela recorrente e rasa brincadeira sobre o
jet-ski verde que seria dado ao vencedor que conseguisse discursar seu
agradecimento em menor tempo. Apesar de teoricamente valorizar a
representatividade, aquele profissional menos importante que se alongar um
pouco no agradecimento continua sendo catapultado do palco com a “delicadeza”
usual. Nem mesmo a presença da sempre bela Helen Mirren, participando de
maneira obviamente desconfortável da tolice, ajudou a transformar o material
vaudeville em algo minimamente digno da pretensa grandeza da noite.
O importante não é respeitar a representatividade, apenas
passar a imagem de que respeita, o público não deve ser ingênuo, os movimentos
são comercializados, na intenção de evitar o boicote nas bilheterias. Tudo se
resume aos lucros na fábrica de sonhos. Na categoria de Filme Estrangeiro, na
dúvida, premia-se o produto menos interessante em competição, o chileno “Uma
mulher fantástica”, protagonizado pela transexual Daniela Vega Hernández, que
também foi generosamente utilizada no palco, já que a imprensa mundial precisa
registrar como a mentalidade da Academia evoluiu.
O início emulando os clássicos cinejornais foi nostálgico, a
pena é que o direcionamento de resgate do passado cultural de Hollywood acabou
sendo engolido pela necessidade midiática de vender a revolução comportamental.
Já na brincadeira do monólogo de abertura de Jimmy Kimmel, houve espaço para um
mea culpa sobre a gafe da troca dos envelopes no ano anterior, além de uma
análise boba sobre a figura da estatueta, um eunuco que deixa suas mãos à
mostra. Tudo muito rasteiro, infantil, roteiro pouco trabalhado.
O primeiro grande momento de elegância e inteligência da
noite foi a participação da veterana Eva Marie Saint, premiada em 1954 por
“Sindicato de Ladrões”, que deu aula de vivacidade e emocionou a plateia ao
falar sobre o recente falecimento de seu marido, companheiro de várias décadas.
Logo depois, a jovialidade impressionante de Rita Moreno, premiada em 1962 por
“Amor, sublime amor”, audaciosamente repetindo o vestido da época. Nestes
momentos, o público consegue ter um vislumbre do que o Oscar já representou,
antes de se tornar irrelevante perfumaria brega.
Na fala sutil de Mark Hamill, eterno Luke Skywalker, um
ponto de vista jocoso que compreende a fragilidade do verniz socialmente
consciente do engajamento na indústria. Ele cita “discriminação contra robôs”,
os colegas no palco fingem não escutar, a plateia emudece. O jogo é marcado,
todas as minorias serão celebradas, os tons de cinza serão aniquilados, a festa
da hipocrisia não pode parar. Ashley Judd, Salma Hayek e Annabella Sciorra,
lendo o teleprompter com austeridade, abordam diretamente o movimento Time’s
Up, o discurso não comove, não serve como protesto, mas cumpre a função
principal, prover fotos interessantes para os veículos de comunicação.
A vitória óbvia da animação “Viva – A vida é uma festa” desfere
um gancho poderoso no queixo de Trump, Hollywood mostra que ama os mexicanos, o
discurso de agradecimento brada pela importância da representatividade, sobra
até um “Viva a América Latina”, faltou apenas os violinos e a fanfarra gloriosa
típica do mestre John Williams, para que tudo ficasse ainda mais artificial.
Digamos que a animação da Pixar cumpriu neste ano a função que a saudosa Carmen
Miranda executou outrora, quando os norte-americanos precisavam de aliados na época
da guerra.
É válido ressaltar talvez o momento mais tolo, que está se tornando um péssimo hábito no
evento. O apresentador convoca alguns astros para caminharem até uma sala de
cinema próxima, para “surpreenderem” a plateia, como forma de agradecer o
público cinéfilo mundial. Tão crível quanto os reality shows que dominam nossa
televisão atual, a esquete é pura perda de tempo, obviamente combinada, com
reações hilárias dos supostos surpreendidos. Vexame grotesco desnecessário.
Gafe imperdoável do “In Memoriam”, esquecer nomes como Bill
Paxton, Adam West e Miguel Ferrer. Sintomático do desprezo dos realizadores
pela tradição, um segmento que já foi profundamente emotivo no passado, hoje,
despejado rápido, tapinha nas costas inglório com pessoas que simplesmente
forjaram a indústria de cinema.
Sobre os vitoriosos da noite, Frances McDormand não apenas recebeu o justo reconhecimento
por seu trabalho monumental em “Três anúncios para um crime”, como também
garantiu o melhor discurso da noite, coisa de gente grande, inteligentemente
cutucando as feridas expostas sobre a inclusão das mulheres no sistema. Perto
do feminismo de butique que muitos aplaudem, este breve momento foi um choque
de maturidade.
Guillermo del Toro levou a estatueta de Direção e Filme,
pelo belíssimo “A forma da água”, reconhecimento justo que novamente consagra a
importância do cinema de gênero. É possível argumentar que ele estava no
momento certo, na hora exata, afinal, premiar um mexicano na noite mais
glamourosa de Hollywood é uma oportunidade primorosa de agredir o presidente
Trump, nocaute brutal em um personagem caricato que nem mesmo os roteiristas
mais criativos conseguiriam imaginar em seus trabalhos.
* Texto escrito para o Caderno B do “Jornal do Brasil” (07/03/2018).