O Show de Truman (The Truman Show – 1998)
A experiência de assistir a este filme na semana de estreia no cinema foi uma das mais impactantes que já tive, eu lembro perfeitamente dos momentos posteriores à sessão, tentando digerir as informações, debatendo a história com minha prima, que me acompanhava naquela tarde.
Assim como todo adolescente, eu paguei o ingresso pensando em ver o maluco que havia feito “Ace Ventura”, “O Máskara” e “Debi e Lóide”. Aquele Jim Carrey era apenas uma das camadas do artista, o grande diretor Peter Weir, que já havia mostrado o lado dramático de outro comediante, Robin Williams, apostou no talento do rapaz careteiro canadense.
Antes da indústria televisiva mundial iniciar seus reality shows, confirmando a profecia do roteirista Andrew Niccol sobre a imbecilização do ser humano, o conceito de pessoas atentamente assistindo ao cotidiano de um estranho como forma de entretenimento era considerado bizarro demais.
Nas conversas entre amigos, todos afirmavam que a ideia não podia ser mais estúpida e cruel, uma espetacularização do rasteiro, ficção científica das mais improváveis.
E eles estavam certos. Vinte anos depois, estamos vivendo diariamente esta realidade degradante, as emissoras de televisão conseguiram transformar até mesmo o indivíduo mais patético em lucro certo, o formato abraça diversas vertentes, da sobrevivência na selva à culinária, enquanto uma multidão de artistas sérios deixam a vida esquecidos e na miséria.
Truman Burbank (Carrey) acredita viver uma existência comum, ele cumprimenta seus vizinhos pela manhã, lê o jornal, caminha tranquilo pela rua e, sem perceber, movimenta o lucro da empresa que controla até mesmo a densidade da chuva que molha seu rosto.
A sua indecisão sobre falar ou não com uma garota bonita, constrangimento natural, representa índices melhores de audiência, estabelece suspense, vende mais produtos.
Ele é o protagonista de um show que cativa fãs há mais de trinta anos. Hoje diríamos: imagine o lucro obtido em assinaturas pay-per-view. O público gosta da repetição, o novo no mundo do entretenimento representa risco, logo, quanto mais banal for a rotina do rapaz, melhor será a recepção da plateia.
Christof (Ed Harris) é o que o jovem chamaria de Deus, aquela força “sobrenatural” e desconhecida que rege sua vida, a mão que alimenta os peixes no aquário, o executivo sisudo que vigia tudo à distância, incapaz de sentir empatia.
Da mesma forma que muitos questionam a bondade de um Deus que permite a fome no mundo, o homem, sem um pingo de remorso, implanta traumas terríveis na mente de seu Adão, como o falecimento do pai no mar, apenas para que o vislumbre das ondas causem náuseas, afastando ele da verdade.
Um acidente, a queda de um holofote, o estilhaçar da ilusão, o despertar do coma existencial. Truman passa a compreender que algo está profundamente errado naquilo tudo, alguns figurantes tentam ajudar no processo de desintoxicação, aliviando a angústia que a abstinência da anestesia inconsciente provoca.
O mundo real é a aventura inexplicável. Ele precisa querer atravessar o portal.
A simbologia do poderoso desfecho é emoldurada pela belíssima “Father Kolbe’s Preaching” (Ensinamentos de Padre Kolbe), composta por Wojciech Kilar. Padre Maximiliano Maria Kolbe, o santo de Auschwitz, aquele que deu sua vida em troca da liberdade de um prisioneiro no campo de concentração. A escolha musical evidencia a representatividade metafórica da atitude do protagonista, que vai muito além de uma rebeldia desesperada, catarse redentora.
Truman, ao descobrir que tudo que conhecia até aquele momento havia sido pura mentira, escolheu corajosamente enfrentar o desafio mais devastador, a dura verdade: o mundo não é justo, nada é como desejamos, não há “céu e inferno”, não há respostas fáceis.
O segredo está em perseverar com lucidez.
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