Bird Box (2018)
Cinco anos depois de uma presença sinistra e invisível levar a maioria da sociedade ao fim, uma mãe e duas crianças fazem uma tentativa desesperada de alcançar a segurança. É fundamental que eles mantenham os olhos fechados!
- O texto contém spoilers, logo, recomendo que seja lido após a sessão.
O livro original do estreante Josh Malerman é o típico page turner pensado para ser lido de uma sentada só, não traz nada de novo ao gênero, mas é eficiente, acima da média. Já esbarrei em textos críticos que cometem equívocos tolos como afirmar que o filme é uma cópia do excelente “Um Lugar Silencioso”, sem pensar que o livro foi lançado em 2014!
Qualquer comparação é apenas um atestado público de ignorância. A proposta de “Bird Box”, guardadas as devidas proporções, está mais para “Ensaio Sobre a Cegueira”, de Saramago. Outros, tão tolos quanto, desprezam infantilmente o título por ser um produto original da Netflix (na cabeça empoeirada dos acadêmicos, a grande vilã das salas de cinema), argumentando o terrível “não vi e não gostei”, tremenda falta de profissionalismo.
Quando encarado com maturidade emocional e analisado com o sempre fundamental respeito pelos esforços da equipe artística, você consegue enxergar algumas falhas na execução, como as frágeis tentativas de transmitir sensorialmente a ausência da visão, recurso que nunca injeta o nível de tensão que teoricamente devia entregar, ou os ângulos de câmera (planos abertos) que também dificultam este processo, mas generosamente compensadas pelos vários acertos, especialmente na compreensão estética de que o horror reside no desconhecido e, principalmente, na importante reflexão que suscita ao final da sessão sobre o tema espinhoso da depressão. O ritmo é frenético, outro ponto positivo, equilibrando bem a alternância frequente entre tempo passado e tempo presente.
“Será que ela conseguiria? Seria capaz de protegê-los (as crianças) por mais dez anos? Conseguiria cuidar deles até que pudessem cuidar dela? E para quê? Para que tipo de vida ela os está protegendo? Você está salvando a vida deles para que tenham uma vida que não vale a pena.” (trecho do livro)
O roteiro é escrito pelo competente Eric Heisserer, de “A Chegada”, com direção da dinamarquesa Susanne Bier, de pérolas pouco conhecidas como “Depois do Casamento” (2006) e “Em Um Mundo Melhor” (2010). A alegoria é bastante simples, apesar de boa parte do público aguardar por visões lovecraftianas de monstros, expectativa fadada à frustração, o leitmotiv da trama é mais engenhoso, toca diretamente nos medos que todos nós compartilhamos em vários momentos da vida.
A protagonista, vivida por Sandra Bullock, no flashback, trabalha em uma pintura sobre a inabilidade de se conectar (perceba como é frequente a utilização no primeiro ato de cenas mostrando pessoas presas às telas de seus celulares), sendo que a própria é criticada pela irmã, vivida por Sarah Paulson, segundos antes, por ter se afastado da mãe.
Ela não se sente bem com a própria gravidez e, na mesma cena, de forma desavergonhadamente expositiva, o roteiro nos informa que ela sofreu com a ausência do pai. Uma clara demonstração de autopiedade neste momento intimista que, obviamente, conduz o filme à primeira cena exibindo uma bizarra tentativa de dar fim à própria vida. E, em questão de minutos, o pandemônio é instaurado na cidade. Vale destacar que esta sequência impressiona pelo bom uso do gore.
No pequeno grupo de estranhos que se forma, somos apresentados a diversas versões do fenômeno, como o atendente de supermercado que, após anos sendo alimentado por teorias de conspiração na internet, sem pensar duas vezes, conecta o caso ao apocalipse em várias religiões, o egoísta preconceituoso (John Malkovich abraçando a caricatura da era Trump, pela visão da esquerda) que responde ao medo com pura agressividade, ou a senhora que, diante do perigo, rapidamente coloca a responsabilidade de sua vida nas mãos de outrem, no caso, o exército norte-americano.
O mais difícil é enfrentar sem muletas o mal desconhecido, ninguém se mostra apto para esta tarefa. O ato de viver é confrontar diariamente todo tipo de malefícios desconhecidos, “atravessar o rio” turbulento em direção à inescapável decrepitude física e psicológica. E, claro, existem aqueles que “idolatram” a dor, enxergando beleza no desespero, elemento que é trabalhado no segundo ato.
A mulher, com depressão pós-parto (fuga da responsabilidade), demonstra tremendo distanciamento emocional, evitando a todo custo o laço afetivo, nunca chamando as crianças pelos nomes.
O desenvolvimento do seu arco narrativo é interno, as mudanças comportamentais necessárias representam um material que seria aplaudido em qualquer drama existencialista, mas, como estão envoltas pelas convenções do gênero suspense/terror, acabam sendo eclipsadas pela dependência do público anestesiado moderno pelos sustos pueris.
É fundamental afirmar, sem revelar muito e estragar a experiência do espectador, que o ótimo desfecho engrandece a discussão metafórica sobre o real significado da maternidade e eleva consideravelmente a qualidade da obra.
Cotação: