O trabalho que a distribuidora “Classicline” realiza há tantos anos é fundamental, merece ser valorizado por todo cinéfilo dedicado. Como crítico, desde os meus primeiros anos na área, divulgo os lançamentos em textos, parceria sólida, e sinto-me honrado de afirmar que fiz amizade com esta equipe séria e apaixonada. A Rafaella é a “voz” da empresa, também é responsável pelas lindíssimas artes de capa que verdadeiramente se destacam no mercado.
O – Como começou seu amor pelo cinema? Quais as primeiras experiências, na sala escura ou em casa, que te despertaram este sentimento?
R – Não consigo lembrar de um tempo em o cinema não estivesse envolvido na minha vida. Antes mesmo de eu nascer o meu avô, fundador da Classicline, já era um pioneiro no ramo do cinema lá no Ceará. Isso depois se expandiu para o home video com as locadoras e depois para a distribuição de filmes com outras empresas, incluindo a Classicline. O cinema sempre fez parte da minha realidade e da realidade da minha família e acabou sendo um dos meus melhores companheiros. Posso dizer que a paixão inicial foi do meu avô, mas definitivamente eu herdei os genes dessa paixão.
O – Quando o amor pelo cinema se tornou um trabalho? Conte sobre a criação da distribuidora, os seus primeiros passos na Classicline e a responsabilidade de hoje definir a identidade visual dos lançamentos com as artes de capa.
R – O primeiro emprego que tive foi trabalhando como funcionária em uma das locadoras da rede da família, a Distrivídeo. Eu tinha 17 anos e ainda estava no meu primeiro semestre da faculdade de Publicidade. Em alguns dias da semana e aos sábados eu ia pra lá e ajudava na organização dos filmes, indicação de novidades para os clientes. Posso até dizer que era um trabalho bem fácil para mim, porque eu assistia tudo e adorava procurar novidades que combinassem com os gostos dos clientes – era uma forma de garantir a diversão do final de semana deles. Era fisicamente cansativo ficar pra lá e pra cá o dia inteiro, mas eu gostava.
Eu não estava envolvida com a Classicline na época da criação da empresa, mas sei que ela foi uma das pioneiras a trazer de volta os grandes clássicos do cinema que eram esquecidos pelas “majors” (grandes distribuidoras). Quando entrei, acho que ela já estava há pelo menos 4 anos no mercado, talvez mais. A verdade é que eu não gostava muito dos resultados visuais que as nossas capas tinham, odiava aquela identidade visual laranja que a agência que produzia nossos materiais gostava de usar e me propus a começar a fazer diferente. No começo foi bem difícil, mas depois na nossa primeira parceria com a Fox, quando finalmente lançamos nossos filmes sem interferências visuais, fiz a proposta de lançarmos todos os nossos filmes assim e montei uma identidade mais limpa para as capas. Alguns clientes foram bem resistentes no começo, mas os elogios chegaram e essa é a proposta que continuamos usando até hoje.
Eu ainda continuo responsável por todo o material gráfico da Classicline, mas acho importante ressaltar, antes que eu comece a levar pedradas por coisas que os clientes não gostam – a responsável sou eu, mas não sou eu quem decido tudo. Eu acolho de coração todas as sugestões dos clientes, mas nem sempre elas acabam sendo financeiramente viáveis para a empresa, e no final das contas, a palavra final é do nosso diretor.
O – Analisando em retrospecto, como você enxerga a importância da Classicline na cinefilia do brasileiro? Eu vi de perto esta história, antes mesmo de trabalhar na área, eu já colecionava e sei como era difícil (no início da popularização da internet) ter acesso aos clássicos. E, principalmente, sei da minha alegria sempre que encontrava os DVDs da Classicline nas lojas. Ninguém se interessava em lançar este material, as majors só se preocupam com imediatismo, vocês lançavam até seriados de cinema.
R – Não só a Classicline. Podemos ter sido os primeiros, mas todas as empresas que ainda se propõem a distribuir filmes fora do mainstream em mídia física no Brasil são verdadeiras gladiadoras. O nosso mercado é difícil, a burocracia é difícil e a pirataria ainda é forte. A verdade é que, se não houvesse o amor do meu avô pelos clássicos do cinema e a imensa vontade dele de trazer esses filmes de volta para as casas dos brasileiros, a Classicline não iria existir. Mais do que memória cultural, essas obras são carregadas de memória afetiva, e essa sempre foi a força motriz da Classicline.
O – Há colecionadores que, na realidade, são colecionadores de mídias físicas, não se importam em ter várias versões diferentes de um mesmo lançamento bobo, ruim, apenas porque eles estão com capas diferentes. Para estes, não importa o filme, são os chatos que reclamam da ausência de blu-rays na Classicline, ignorando que o formato não vingou no país e que não é comercialmente viável para a empresa. Como você vê este tipo de atitude? E, principalmente, fale um pouco sobre a importância de se valorizar o esforço de lançar pérolas obscuras (o carinho envolvido neste processo de seleção, de curadoria).
R – Para ser bem sincera, eu fico arrasada que o Blu-Ray não tenha funcionado no nosso mercado, porque eles sempre são a minha preferência na hora de comprar filmes para a minha coleção. Mas é importante que os clientes saibam – produzir blu-rays é MUITO caro, e boa parte desse valor é calculado em dólares. Com a desvalorização da nossa moeda, o preço de produção dessas peças se elevou muito e empresas pequenas como a nossa, que vendem uma quantidade ainda bem limitada quando comparada aos grandes lançamentos do momento, são muito prejudicadas por essa realidade.
Pelo preço que custaria para produzir e vender um BD clássico para o Brasil conseguimos fazer uns 4 lançamentos em DVD, entende? Os clientes se incomodam com a falta do formato, mas até que ponto eles REALMENTE estariam dispostos a pagar os altos preços que essas mídias custariam? Se até majors desistiram desse formato aqui, chega a ser covardia cobrar de empresas pequenas que elas assumam outra postura. É fácil criticar quando não é você que vai ficar com a corda no pescoço na hora de pagar as contas e os funcionários com mercadoria acumulando em estoque.
O – Existem alguns filmes que você, particularmente, sinta orgulho (ou carinho especial) da Classicline ter disponibilizado no mercado?
R – Eu não saberia escolher favoritos. Uma das coisas que me deixou feliz é que, nos últimos anos, temos trazido mais produções cult-clássicas de volta para as prateleiras, como “Elvira”, “Depois de Horas”do Martin Scorsese, “O Corvo”, Jerry Lewis e filmes do Woody Allen. Mas, dos nossos clássicos, os filmes que eu mais gosto são os da Bette Davis e os musicais – não sei se é porque cresci assistindo Disney, mas eu AMO musicais. Os clássicos, os novos, Bollywood, e até quando fazem episódios musicais em seriados. Acho que a vida de todo mundo deveria ter uma trilha sonora cantada.
O – Algo que me encanta na Classicline é o respeito pelo cinema de gênero, algo que outras distribuidoras tratavam até poucos anos atrás com total desprezo, arrogância elitista. Vocês SEMPRE valorizaram o terror, a comédia, a ficção científica, a fantasia, aventura… Como crítico, considero um absurdo como os acadêmicos empoeirados (e inseguros intelectualmente) tratam estas obras, fundamentais na construção de qualquer indústria de cinema, terreno fértil para cineastas criativos. Como você vê esta questão? (como cinéfila e como representante da distribuidora)
R – Acho que o problema principal nunca foi arrogância elitista. Ela existe? Existe. Mas a questão comercial ainda é a que mais pega. De todos os gêneros clássicos, o que mais tem saída no Brasil é o faroeste. Aqui, até faroeste ruim chega a vender melhor que filmes espetaculares – o brasileiro ama um bang-bang. É por isso que nunca deixamos faltar westerns no nosso catálogo, mas decidimos que isso não seria um fator limitante para o lançamento de outros gêneros.
Se formos fazer um paralelo com a realidade que estamos vivendo hoje, podemos comparar com os blockbusters de heróis e a briga que tem sido colocar outras narrativas nas salas de cinema. Aliás, quero deixar bem claro: eu gosto de quadrinhos e assisto a todos esses filmes. Vou até para sessões se estréia à meia-noite. Os filmes são divertidos, emocionantes… Mas tem tanta coisa disponível para o cinema além disso! É muito triste ver o quanto falta de disponibilidade de salas cinema com outras narrativas.
Eu não sou incoerente ao ponto de esperar que uma empresa valorize a arte acima do lucro, pois empresa sem lucro morre. E se a empresa morre… Não preciso nem explicar, né? Precisa existir um equilíbrio entre o comercial e o artístico. Qualquer um dos extremos nos torna menores e planos. É preciso pluralidade.
O – A situação atual para a cultura em geral neste país está muito complicada, mas a Classicline segue em frente com extrema seriedade e perceptível amor pelo material e pelos clientes, mantendo a frequência de títulos mensais. Como resistir no mercado, apesar de tudo?
R – Rezando muito? (risos). A verdade é inegável, o mercado tomou um baque gigantesco, principalmente quando as duas maiores redes de venda de produtos culturais entraram em recuperação judicial. Passamos por períodos de grandes apertos e as coisas ainda estão difíceis. Algumas coisas que ajudam a Classicline a se manter no mercado foram decisões que resolvemos tomar, como a venda direta pelo nosso site, os cuidados ainda maiores com a seleção de filmes, produção em menor escala… Por aqui, estamos tentando dar o nosso melhor para continuar trazendo cinema para a casa dos brasileiros.
Mas, no final das contas, os maiores contribuidores são os nossos clientes. Quando um cliente escolhe comprar um filme nosso, ele está colaborando para que tenhamos dinheiro para comprar novos masters, produzir novos filmes, pagar conta de luz, energia, aluguel, os salários de nossos funcionários. Quando um cliente compra um filme nosso, ele tá lá investindo na nossa empresa – são os clientes que nos mantém de pé e por isso nós agradecemos muito.
O – Você pode adiantar algumas pérolas que serão lançadas neste ano?
R – E estragar a surpresa? De jeito nenhum! (risos)
O – Rafaella, deixe uma mensagem final aos meus leitores, com certeza, clientes da Classicline.
R – Primeiro, eu gostaria de agradecer pelos constantes elogios que o meu trabalho tem recebido. Toda vez que eu faço uma capa para a Classicline, eu tento trazer e fazer o meu melhor, e trabalhar com um material tão raro, escasso e especial não é fácil. No mais, o que eu peço é que continuemos unidos para manter o cinema clássico vivo aqui no Brasil. Nos tempos obscuros que a cultura tem vivido, manter a chama desse amor que nós temos em comum, o cinema, é quase uma obrigação nossa. Como disse Fellini, “O cinema é um modo divino de contar a vida.”