O Irlandês (The Irishman – 2019)
Frank Sheeran (Robert De Niro), braço direito da família Bufalino, relembra os segredos que guardou por lealdade à seu mentor.
- O texto contém spoilers, recomendo que seja lido após a sessão.
A filmografia de Martin Scorsese é incrivelmente eclética, mas ele ficou marcado por suas incursões nesta temática, logo, não é difícil entender a comoção que seu novo projeto incita, especialmente considerando a presença de Robert De Niro, Al Pacino e Joe Pesci, que decidiu retornar de sua aposentadoria e, ousando fugir de sua zona de conforto, impressiona pela entrega minimalista e, ainda assim, contundente.
A Netflix abraçou o projeto que havia sido recusado por todas as produtoras, que, imediatistas, não enxergaram possibilidade de lucro que compensasse os investimentos, principalmente em computação gráfica, o rejuvenescimento artificial do elenco na maior parte das cenas. Vale ressaltar o brilhantismo na execução deste recurso, que poderia muito bem, em mãos erradas, prejudicar a experiência desviando a atenção.
E, de certa forma, os executivos não estavam errados, “O Irlandês” realmente não é comercial, a sua longa duração, 3h30m, assim como suas escolhas narrativas, o ritmo lento, contemplativo, não seriam decisões acolhidas calorosamente pela garotada que representa hoje quase que a totalidade do público pagante nas salas de cinema.
O diretor é autoindulgente, direito dele, você pode argumentar que filmes recentes como “O Lobo de Wall Street” e “Silêncio” seriam beneficiados pelo clássico ‘menos é mais’, mas esta atitude criativa coube como luva na história do novo projeto, já que o tempo dedicado aos personagens, o silêncio deles em momentos-chave, a câmera evidenciando de perto nos rostos os sinais do envelhecimento, estes elementos reforçam o leitmotiv da finitude.
O cansaço natural do espectador, imerso nos acontecimentos, enfatiza as emoções defendidas no estudo de personagens proposto no roteiro de Steven Zaillian. No universo imagético da obra, as pessoas são apresentadas ao público com cartelas informando como e quando serão ‘apagadas’.
O espectador é convidado a nutrir empatia por aquelas figuras moralmente abjetas, como quando vemos um raro momento de lazer da família jogando boliche. O chefão Russell Bufalino (Pesci), homem de fala mansa, segura, que aparenta controle total sobre todos os aspectos de sua vida, vira uma criança desorientada quando percebe que a filha adolescente de seu braço direito, Frank (De Niro), não se sente confortável em sua presença.
Ao humanizar o personagem, evidenciando sua angústia por acreditar que a jovem tem medo dele, Scorsese planta as sementes da reflexão avassaladora que será trabalhada nos minutos finais do filme.
No crepúsculo da vida, os mais poderosos, aqueles que se consideravam deuses na Terra, que decidiam com tranquilidade os métodos utilizados na destruição de seus oponentes, acabam humilhados, esquecidos, a estratégia mais elaborada é fútil nota de rodapé no teatro patético da existência humana, o tempo apaga tudo, inclusive a mais ínfima possibilidade de redenção, já que não há viva alma para responder a voz enfraquecida que suplica por perdão.
A sensibilidade do diretor conduz a câmera a focar exatamente na mão envelhecida e trêmula de Russell que se apoia na cadeira de rodas, praticamente um deboche, deteriorado terreno em que se destaca um anel dourado, agora frouxo no dedo, peça que simbolizava outrora o medo que seu nome impunha nos inimigos. A fotografia do mexicano Rodrigo Prieto colaborando na construção da atmosfera fria, impessoal, decadente.
No olhar triste de Frank, a certeza de que não há força no mundo capaz de fazer com que ele vença seu adversário mais implacável, o seu próprio corpo.
Cotação:
Trilha sonora composta por Robbie Robertson: