Judy – Muito Além do Arco-Íris (Judy – 2019)
Inverno de 1968. Com a carreira em baixa, Judy Garland (Renée Zellweger) aceita estrelar uma turnê em Londres, por mais que tal trabalho a mantenha afastada dos filhos menores. Ao chegar, ela enfrenta a solidão e os conhecidos problemas com álcool e remédios, compensando o que deu errado em sua vida pessoal com a dedicação no palco.
A despedida da verdadeira Judy no cinema foi com o ótimo “Na Glória, a Amargura” (1963), que trazia vários toques autobiográficos, afinal, ela, como toda grande artista, arrancava o coração do peito e entregava para seu público, sofria para proporcionar sempre o melhor espetáculo possível, exibindo mágoas, fraquezas, vícios, sem temer o escrutínio do público e da crítica.
O roteiro de Tom Edge, baseado em peça de Peter Quilter, capta com extrema sensibilidade esta essência de puro sacrifício, o interesse da obra não é o viés sensacionalista da decadência, tampouco os bastidores turbulentos do show business, a linda cinebiografia comandada por Rupert Goold acerta ao focar no conflito interno da protagonista, defendida de forma brilhante por Renée Zellweger, no melhor momento de sua carreira.
Desde muito nova, graças à ambição desmedida da mãe dominadora e fria, Judy (interpretada na adolescência pela encantadora Darci Shaw) foi impedida de viver as etapas naturais e necessárias para o amadurecimento emocional e psicológico, teve sua despreocupada infância substituída por holofotes e memorização de diálogos, virou uma empresa, até mesmo seu bolo de aniversário era falso, encenação para ser comercializada em cinejornais e agregar ainda mais valor ao produto, que, obviamente, não podia sofrer transformações físicas indesejadas, a imagem maquiada captada pela lente da câmera sobrepujava o reflexo abatido no espelho, logo, foi introduzida ao hábito de pílulas para emagrecer, dormir e acordar.
A trama utiliza o recurso do flashback com segurança, flertando sutilmente em alguns momentos com o realismo fantástico, assim como também opta por definir as sequências musicais como elemento que avança a narrativa, com as letras e, principalmente, a maneira como Renée as entrega, preenchendo lacunas com inteligência. Alguns detalhes na caracterização emocionam, como o contraste absurdo na forma como uma cena importante no segundo ato apresenta Judy totalmente sóbria, pura, pela primeira vez se sentindo cuidada com carinho, uma fresta na empoeirada janela para uma realidade que poderia ter conquistado caso tivesse sido presenteada outrora com a possibilidade de ser apenas Frances Ethel Gumm, caso não tivesse pisado no primeiro palco vaudeville aos dois anos de idade.
Há problemas na sua estrutura, como o raso desenvolvimento de personagens secundários importantes e uma subtrama que poderia ser inserida com mais fluidez, envolvendo um casal devotado à ela, mas estes segmentos cumprem a função de reforçar este encaminhamento intimista, conduzindo ao desfecho poderoso, eficiente e que fica na mente horas após a sessão. Não seria equivocado afirmar que o filme inteiro é uma bela e elegante desculpa para a catarse promovida nesta última cena.
“Judy – Muito Além do Arco-Íris” é um recorte específico muito sentimental, quase despencando na breguice, porque compreende que a homenageada, apesar de extremamente competente em seu ofício na área do entretenimento, desejava apenas viver próxima aos filhos, desejava ser mãe, e, mais que tudo, desejava ser amada.
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