Kadaver (2020)
* O texto contém spoilers leves, recomendo que seja lido após a sessão.
Em tempos apocalípticos de fome, uma peça num hotel com jantar incluído atrai uma multidão. Mas uma família descobre que o preço a pagar é bem maior que o do ingresso.
“Se eles (plateia) perceberem o que está acontecendo cedo demais, poderão nos dominar.”
O jovem roteirista/diretor norueguês Jarand Herdal ecoa “De Olhos Bem Fechados”, de Kubrick, entregando um fascinante conto de horror enxuto e angustiante.
Na imagem que estabelece o cenário do mundo destruído, vemos em destaque torres gêmeas, uma caindo sobre a outra, toque realista, nada de colapso simétrico, pista sutil que encaminha para o leitmotiv da obra exposto minutos depois, o enfrentamento do medo com a utilização consciente e inteligente da teatralidade/fantasia, como a mãe, Leonora (Gitte Witt), uma experiente atriz, ensina logo no início para a pequena filha Alice (Tuva Olivia Remman).
A família, como tantas outras, adentra o hotel luxuoso buscando saciar a fome, a fotografia do sueco Jallo Faber competentemente potencializa o elemento fabulesco da trama no contraste radical entre o cinzento mundo exterior e o interior rubro da acolhedora mansão. O anfitrião, Mathias (Thorbjørn Harr), divide o coletivo em grupos e começa seu discurso memorizado, ressaltando a importância da utilização de máscaras por parte da plateia, reforçando que elas não podem ser retiradas durante a experiência.
O cabresto elimina a individualidade, anulando aquilo que nos torna humanos, em suma, transforma os convidados em ovelhas (elemento presente nas pinturas espalhadas pelo ambiente) facilmente manipuláveis. Nas palavras de Mathias, “esqueçam o mundo lá fora, não tirem as máscaras, tudo é encenado, o hotel é o palco”. A partir do momento em que Leonora, Jacob (Thomas Gullestad) e Alice abandonam esta regra fundamental, passam a enxergar os bastidores do jogo, a terrível, verdadeiramente diabólica, realidade.
O terror novamente exerce uma de suas funções, infelizmente ignorada por aqueles que desprezam o gênero, retratar (inconscientemente ou não) de forma crítica e com alegoria criativa o mundo real. Não me surpreende perceber que o filme está sendo pouco comentado e, nestes casos, apedrejado pelos veículos norte-americanos…
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