O Espelho Tem Duas Faces (The Mirror Has Two Faces – 1996)
Cansada de estar solteira, a professora de meia-idade Rose Morgan (Barbra Streisand) entra em um “relacionamento” com um colega (Jeff Bridges), mas ele só quer um casamento platônico.
Este é um dos casos em que uma refilmagem pode ser melhor do que a obra original, ao utilizar livremente o conceito do francês “Le Miroir à Deux Faces” (1958), de André Cayatte, expandindo o elemento farsesco árido para uma ode terna à necessidade do amor romântico, o roteiro de Richard LaGravenese (de “As Pontes de Madison”) toca o coração e a mente de todo indivíduo que já compreendeu que a visão cínica de mundo, a psicológica couraça de ilusória proteção, não oferece respostas fundamentais às questões existenciais mais importantes.
O personagem vivido por Jeff Bridges representa (de forma hilariamente inverossímil, uma consciente caricatura) a utopia defendida por todos aqueles que internamente se odeiam, terrivelmente frustrados, e que, por conseguinte, estimulam a demonização do gênero oposto como uma espécie de revide em que se toma veneno esperando que o outro adoeça.
Ele acredita que reprimindo seus impulsos naturais, vai satisfazer emocionalmente suas carências, vivendo um relacionamento alicerçado puramente no campo das ideias. O melhor amigo tenta avisar que é uma loucura, mas o professor travado (a forma como ele interage com seus alunos em sala reflete sua postura na vida) decide buscar sua mulher ideal publicando anúncio em um correio sentimental.
Rose (Streisand) é complexada com sua aparência, até sua vaidosa mãe (Lauren Bacall) debochava de seu nariz na adolescência. O homem que atraiu sua atenção, Alex (Pierce Brosnan), acabou se casando com sua extrovertida irmã (Mimi Rogers).
O mundo parece empurrar ela na direção do vitimismo, do cinismo irremediável, mas algo em seu caráter impede uma total aceitação conformista, apesar dela se minimizar no figurino, tentar se apagar na sociedade (a recusa em utilizar maquiagem), o amor pela arte (cinéfila dedicada) fornece a esperança do escapismo adorável dos finais felizes hollywoodianos.
Abraçar a negação da magia não elimina o mágico do palco, apenas torna o seu truque algo insuportavelmente enfadonho.
Ela ensina aos seus alunos que a realidade não é como nos filmes românticos, com beijos lindamente fotografados e emoldurados em tom épico por melodias de Puccini (elemento que rima com o belo desfecho, que entrega exatamente esta opção lúdica), o amor romântico não passa de mentira, uma ilusão, manipulação desalmada.
O que leva a humanidade então a seguir os rituais? Ela mesma responde para os rostos interessados no ambiente, um trecho do discurso que Gregory (Bridges), que havia se infiltrado na aula, infelizmente não escuta. A paixão dá sentido à uma vida breve e dolorida, cria fragmentos de memórias que enriquecem a rotina.
O jogo de sedução do carismático casal traz muito do charme das comédias românticas da década de 50. O choque entre o jeito abobalhado dele, incapaz de lidar com a beleza feminina, e a insegurança encantadora dela, incapaz de transmitir naturalidade ao arriscar alguma sofisticação padronizada, proporciona momentos divertidos, como quando ela tenta ensinar à ele maneiras de manter seus alunos acordados, ou, talvez a cena mais lembrada, a teatralizada tentativa de consumar uma simples noite de núpcias à luz de velas.
A utilização da clássica canção “You Don’t Know Me” (você não me conhece), de Cindy Walker, na sequência em que a mulher finalmente faz as pazes com sua imagem no espelho (leia-se, após abandonar o conformismo vitimista), não poderia ser mais acertada, já que a própria Rose não se conhecia, o reflexo que ela aceitava até aquele dia no espelho carregava mágoa, culpa e medo.
Ao se permitir viver a experiência da forma que sentia ser mais prazerosa, não por imposição de outrem, mas sim, por pleno entendimento de que aquela era a opção que trazia de volta o brilho da criança pura em seu olhar, ela finalmente tomou as rédeas de seus sentimentos, e, neste processo de autotransformação, mudou a percepção de vida de todos ao seu redor, pavimentando a estrada da felicidade com maturidade.
“O Espelho Tem Duas Faces” sobreviveu muito bem ao teste do tempo, segue eficiente, emocionante e, nestes tempos atuais sombrios, verdadeiramente terapêutico.
Cotação:
Trilha sonora composta por Marvin Hamlisch (“Love Theme” composto por Barbra Streisand / “Nessun Dorma”, ária da ópera Turandot, de Giacomo Puccini):