Arca Russa (Russkiy Kovcheg – 2002)
Um museu como um ser vivo, uma entidade que respira e tem personalidade própria. Sokurov empresta alma ao colossal palacete do Hermitage, em São Petersburgo, um dos maiores museus do mundo.
Um dos projetos mais importantes do cinema russo, filmado com câmera digital em apenas 1 dia, sem cortes, num impressionante plano-sequência de 96 minutos, feito único na história desta arte, contando com cerca de 2 mil figurantes, uma preparação que tomou longos 7 anos, uma escala espantosa para um conceito desafiador: atravessar 33 salas do museu que foi a residência oficial dos czares de 1732 a 1917, conduzindo o espectador (câmera em primeira pessoa) de forma onírica por 3 séculos da História do país, de Pedro, o Grande, passando pela imperatriz Catarina II, os Romanov, até os dias atuais.
A execução é fascinante, um fluxo de memória hipnotizante, até mesmo para aqueles que não conhecem o tema, mas, claro, os estudiosos terão uma experiência ainda melhor. É incrível a coreografia criada numa locação que não é das mais simples, envolvendo escadas em caracol, corredores estreitos, ambientes pouco iluminados, multidões, tudo sem perder o timing da deixa com o elenco em cada marcação, o esforço do diretor de fotografia Tilman Büttner é absurdo, coisa de louco.
No início fica implícito que a voz (do próprio Sokurov) que escutamos é a de um fantasma, ele não sabe o que está fazendo naquele local, ele se recorda apenas de um acidente. O primeiro contato que estabelece é com uma furtiva e rabugenta figura que remete ao escritor francês Astolphe de Custine. Um aspecto valoroso é deixar no ar duras críticas ao comunismo, simbolizadas principalmente na sala dos caixões, evocando as mortes da ditadura stalinista. A passagem de tempo não é feita de forma cronológica, em alguns momentos personagens de eras distantes se encontram, uma fluidez narrativa que só é superada pela proeza técnica do hercúleo trabalho.
O desfecho pleno em simbologia traça paralelo com a preservação da humanidade pela Arca de Noé, mostrando o museu literalmente como uma arca flutuando no revoltoso oceano do tempo, preservando a cultura russa para as próximas gerações.
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