Emilia Pérez (2024)
No México, uma advogada (Zoe Saldaña) recebe uma oferta inesperada para ajudar um temido chefe (Karla Sofía Gascón) de cartel a se aposentar de seus negócios e desaparecer para sempre, tornando-se a mulher que ele sempre sonhou ser.
O roteirista/diretor francês Jacques Audiard é muito competente, eu destaco alguns filmes em sua jornada, “Um Herói Muito Discreto” (1996), “Sobre Meus Lábios” (2001), “Ferrugem e Osso” (2012) e o excelente “O Profeta” (2009).
Ele retorna desta feita com um musical subversivo inspirado no livro “Écoute”, de Boris Razon, uma opção, por si só, corajosa, atitude louvável, já que acentua o aspecto da teatralidade inerente ao desejo do chefe do cartel.
Antes de qualquer coisa, acho válido tirar o elefante da sala. No mundo perigosamente infantilizado e doentio em que estamos vivendo, eu, respeitando a arte, o meu trabalho e o público, remo contra a corrente e analiso puramente a obra, com base em meus critérios como profissional da crítica, por aquilo que ela se propõe a ser.
As rasas discussões sobre polêmicas, fofocas, a tola cultura do “cancelamento” e o jogo sujo dos bastidores objetivando a estatueta dourada, eu deixo para meus colegas colecionadores de bonequinhos e revistinhas de super-heróis.
A trama é intensamente fascinante, remete em espírito aos trabalhos mais audaciosos de Pedro Almodóvar, como “A Pele Que Habito” (2011), mas com uma dose extra de ironia, além de pitadas de Gaspar Noé, François Ozon e, claro, Jacques Demy, em suma, você não consegue tirar os olhos da tela, boquiaberto, enquanto o filme vai revelando suas camadas, entregando reviravoltas chocantes, fortalecidas por um elenco talentoso e perceptivelmente motivado.
Zoe Saldaña recebe a oportunidade raríssima na indústria atual de se desafiar como atriz, algo que ela não faz desde “Tudo Por Justiça” (2013), e, com folga, entrega a melhor atuação de sua carreira.
O ponto alto é a cena em que ela canta a hipocrisia da sociedade em um evento, atravessando o salão expondo verdades incômodas, a sequência musical mais tecnicamente elaborada e que se sustenta unicamente na sua desenvoltura.
A personagem é especialista no tema, ela é apresentada defendendo e inocentando um óbvio criminoso, por conseguinte, aceitou um caminho asfaltado pela ambição vazia, recusando qualquer régua moral ou ética, logo, o destino a presenteia com um espetáculo farsesco tão grandioso que só poderia conduzir à tragédia.
Karla Sofía Gascón merece reconhecimento pela forma genuína com que ressalta sutilmente o esforço de se adaptar à sua nova identidade, mas ela emocionalmente ganha definitivamente o público no momento em que, como tia, escuta um dos filhos pequenos cantar a saudade do pai.
A cena é conduzida de forma tão terna, tão doce, quebrando conscientemente o tom amargo do processo de ressignificação existencial da protagonista, com a sua reação inteligentemente ecoando na mente do espectador o argumento honesto do cirurgião à advogada, sobre a impossibilidade de se modificar ou consertar artificialmente uma alma.
Um elemento fundamental na equação é a trilha sonora composta por Clément Ducol e Camille Dalmais, que capta com energia e senso de humor o direcionamento do roteiro, sem prejudicar a imersão nem mesmo nos segmentos mais vanguardistas, os excessos não soam gratuitos, acompanham o desenvolvimento narrativo, por vezes potencializando o caos, ou, em certas sequências, surpreendendo ao insinuar conotações mais filosoficamente intrigantes em situações aparentemente áridas.
A execução não é impecável, o segundo ato seria beneficiado com uma edição menos generosa, mas “Emilia Pérez” é uma experiência sensorial original, que se arrisca bastante em todos os sentidos, um esforço que não pode ser ignorado.
Cotação:
- O filme estreia nesta semana nas salas de cinema brasileiras.
Trailer: